Pan-óptico pós-moderno.



Em fins do século XVIII o filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham idealizou um modelo de prisão para submeter os internos à ininterrupta vigilância. Constituía-se de um prédio cilíndrico, no qual as celas ficariam voltadas para a parte externa, enquanto que no núcleo haveria um recinto com plena visibilidade de todas elas.

Parece conversa sobre coisa arcaica, ultrapassada, certo? Deixemos de lado, então, os dotes arquitetônicos de Bentham e nos concentremos nos mecanismos de vigilância individual. Não apenas dos internos de instituições prisionais, mas de todo e qualquer cidadão, inclusive você, prezado leitor. Se a idéia do pan-óptico não vingou no plano da engenharia, tudo indica que está a pleno vapor no sentido simbólico.

Há dias houve intensa balbúrdia com a notícia de que os norte-americanos detêm franco acesso às informações virtuais de qualquer caboclo mundo afora. Tirando o ranço ideológico latente, justificado ou não, em desfavor dos ianques, é preciso admitir que esse tipo de controle ignóbil não é particularidade deles. Desde tempos imemoriais, povos conquistadores, sejam nações, impérios, cidades-estado, etc., têm procurado conter os povos dominados também mediante controle de informações. Relativize o conceito de dominação e o invólucro pode mudar com o tempo e de acordo com o espaço, mas a fórmula é a mesma.

De todo modo, o que nos resta? Pegar em armas e declarar guerra? Torcer para que as pressões internacionais produzam algum efeito? Sou cético quanto a qualquer dessas medidas. O conselho, como sempre, é ter cautela, procurando conter ao máximo a disponibilização de informações pessoais na rede. Afinal, não precisamos nos preocupar apenas com a turma do Obama, o perigo ronda perto.

Criminosos têm utilizado com sucesso informações pessoais das vítimas, estejam elas disponíveis na rede ou não. Achacando dissimuladamente contas bancárias ou monitorando movimentos e ações para a prática de roubos, seqüestros, extorsões. É difícil se esquivar dessas práticas, pois o fenômeno do crime migra para todas as frestas das relações sociais. Nesse caso, além da sempre recomendada precaução, o negócio é torcer pelo sucesso do trabalho das autoridades incumbidas de coibir essas práticas.

Complicado é quando o estado, portador e custódio de informações pessoais dos cidadãos, por conta própria, cuida de divulgá-las. Exemplo do imbróglio veio a público depois de divulgado um convênio do Superior Tribunal Eleitoral com a Serasa, órgão privado, para disponibilização de alguns dados, como datas de nascimento e eventuais óbitos. O enredo é o seguinte, o TSE disponibiliza informações dos eleitores para a Serasa – que por cláusula expressa do convênio está autorizada a compartilhá-las com seus clientes – em contrapartida pela emissão de certificados digitais.

Depois de manifestações públicas de altas autoridades, como os ministros do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio e Carmen Lúcia, o acordo ruiu, pelo menos provisoriamente, pois foi suspenso por ordem da Ministra Laurita Vaz do Superior Tribunal de Justiça e Corregedora do TSE. E, dada a repercussão, é provável que o fato vire registro de outro lamentável ato falho a ilustrar a história das instituições públicas nacionais. Todavia, também foi noticiado que o Tribunal de Justiça de São Paulo há tempos mantém ajuste dessa natureza. Cabe indagar, será que outros órgãos públicos também não o fizeram? Em caso positivo, quais? E que tipos de informações exatamente são disponibilizadas?

Parece estar se cumprindo, com algumas singularidades e ressalvas, a profecia orwelliana do grande irmão, embora esse irmão possa ser qualquer um. Privacidade parece coisa do passado. Duvido que a tecnologia deixe de se manter invasiva. Minha expectativa é que os fuxiqueiros cansem ou chegue o momento em que nada mais haja para revelar. Até lá, quantos poucos permanecerão incólumes às investidas dos ianques, órgãos públicos e privados, curiosos ou criminosos?

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal



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