Eu tive um sonho



a semana que passou, foram celebrados os cinqüenta anos da política e historicamente importante Marcha sobre Washington. Foi quando Martin Luther King proferiu seu famoso discurso “I have a dream”. Assim como Martin, também tenho esse sonho, de viver num mundo com menos desigualdade e onde os homens sejam reconhecidos por seus méritos pessoais, não pelo que eles possuem ou por qualquer outra característica ou apego religioso e ideológico. Bilhares de pessoas devem partilhar desse sonho. Mas, infelizmente, estamos longe de sua concretização.

As estatísticas indicam que desde o discurso de Martin muita coisa melhorou nos Estados Unidos. O reconhecimento dos Direitos Civis é um exemplo, embora ainda sejam identificados focos de ignóbil resistência. No plano econômico, se observa o mesmo, mas a equação liberdade/igualdade está aquém do desejável.

Segundo informações colhidas na imprensa, em 1967, a remuneração média de um negro equivalia a 54% da renda de um branco, enquanto que em 2011 essa relação foi de 65%. Houve evolução, óbvio. Mas em parâmetros desejáveis? Esse avanço de 11% não é pouco para um período de meio século?

No período de 1959 a 1969, o percentual de negros pobres caiu de 55% para 32%. Entretanto, em 2010, quando 15,1% da população norte-americana se encontrava abaixo da linha da pobreza, essa fatia de economicamente desprivilegiados era 27,4% ocupada por negros. Os índices de desemprego, especialmente em razão da crise financeira mundial de 2008, aumentaram, mas a proporção de desempregados negros em relação aos brancos se intensificou. Enquanto em 1963, havia 10,9% de negros desempregados, 5,5% de brancos estavam na mesma condição. Em 2012, os negros desempregados representavam 14%, à medida que entre os brancos a taxa era de 6,1%.

Essas são as estatísticas de uma nação onde o racismo sempre foi aberto e que, por essa razão, pode encarar frontalmente o problema. Resta indagar como andam as coisas nesse nosso país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, onde o racismo é evidente, porém dissimulado. Oculto sob o mito da democracia racial, o preconceito no Brasil não recebeu o mesmo tratamento. Por isso, anda a espreita.

Lá nos “esteites”, o racista nos dirá na cara que nosso sonho não passa de uma quimera, que brancos e negros têm muito mais diferenças do que somente a cor da pele. Aqui o racista disfarça, esculpe no rosto um sorriso cínico, desfere um tapinha cordial em nossas costas e diz que há outras questões mais prementes a nos preocupar, afinal no transporte coletivo os negros sentam onde querem. Desproporções havidas entre os salários dos brancos e os dos negros, ou o acesso e freqüência à educação formal parecem não relevar. O fato de a população carcerária ser composta de cidadãos predominantemente não brancos também pouco importa para esse discurso distorcido.

Outra peculiaridade a se ressaltar por aqui é que o preconceito, além de velado, não se dirige apenas aos negros. A precisa antropologia musicada de Caetano e Gil remete aos pretos, aos quase pretos ou aos quase brancos.

Ainda estamos submetidos aos efeitos da escravidão. Há, em tese, liberdade, exceto claro para os presos e perseguidos por um Direito Penal em grande parte tendencioso, mas igualdade é coisa para inglês ver, exatamente como as leis surgidas para coibir o tráfico negreiro e que freqüentemente eram burladas pelo velho jeitinho.

Mundo afora o racismo não é diferente. Recentemente um senador italiano comparou a primeira ministra negra daquele país a um orangotango. O sujeito pertence ao sugestivo partido anti-imigração da Liga do Norte. Já está dito tudo. É curioso que europeus tenham colonizado, não raro por intermédio de genocídios, terras americanas, africanas e asiáticas, e atualmente estejam convictos de que purgaram seus pecados, sendo a hora de cada qual ficar no seu espaço. A mensagem fascista é clara, a ministra não deve ser destacada por seus méritos ou deméritos, mas simplesmente por ser negra.

Há sinais evidentes de que se principiou a colocar em prática o sonho de Martin Luther King. No entanto, ainda estamos longe de materializá-lo. Muito ainda deve ser feito, pelo sonho de Martin, por nossos sonhos, pelos sonhos daqueles que sofrem na pele, e pela pele, a ignomínia do preconceito.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal



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