Ficções e arbítrios.



As musas invocadas por Roberto Schaan Ferreira e as mágicas florestas nórdicas contadas por Marcel Citro Azevedo revelam talentos inequívocos para a ficção. Como aplicados magistrados e competentes professores de Direito trabalham num campo significativamente mais restrito, onde o poder criativo é mínimo. A capacidade de artesãos de sintaxes pode ser visível tanto nos textos literários quanto nos jurídicos, mas nestes o processo imaginário é praticamente nulo.

Assim trabalham os juízes. Ou pelo menos devem trabalhar. As respostas que constroem para solucionar os conflitos que lhe são submetidos têm por alvenaria o Direito. Seja este um plexo de regras, normas, leis, princípios, preceitos, valores, são com essas ferramentas que trabalham. Se delas se afastam, há arbítrio. A definição desses instrumentos e a própria maneira de empregá-los são bastante controvertidas. Ainda assim, é possível extrair consensos mínimos. Se para o ingresso em determinado recinto são necessárias vestimentas verdes, exigência esta com amparo constitucional, um juiz pode entender que o adequado seja o verde-água, enquanto outro, o verde-musgo, por mais distintas que possam ser as conotações. Contudo, será vedado adentrar no local de vermelho ou azul. E, com exceção de daltônicos ou mal-intencionados, concordaremos em considerar corretas as ações cujo propósito seja cumprir a proibição.

É claro que os juízes, enquanto seres humanos, compostos de naturais e diversas idiossincrasias, predispostos a inclinações que lhes moldaram suas formações intelectuais, haverão de divergir a respeito de circunstâncias fáticas ou da própria aplicação do Direito. O progresso das neurociências tem indicado que há elementos atávicos e fisiológicos que podem encaminhar a decisão num ou noutro sentido. Especula-se, por exemplo, que o juiz com fome tem a tendência de se mostrar mais rigoroso que o recém alimentado.

Não sei se Marcel e Roberto, ourives das palavras que são, concordariam com minha opinião de considerar sonoramente desagradável uma locução que predominou nos dias que passaram: embargos infringentes. Não importa. O que releva é que são naturais as divergências como aquela manifestada no âmbito do Supremo Tribunal Federal a respeito do cabimento do malfadado recurso. Mas sejam os votos favoráveis a sua admissibilidade, sejam os contrários, todos empregaram aquelas ferramentas que são próprias do Direito. Adjetivações da decisão colegiada como pizza, marmelada ou maracutaia, com o devido respeito, devem ter partido de pessoas sem qualquer familiaridade com o cenário jurídico ou mais preocupadas em inserir numa ordem que se pretende técnica apenas suas impressões pessoais.

Estariam os ministros favoráveis ou contrários aos embargos com fome quando proferiram seus votos, tendo a carência alimentar determinado um ou outro caminho? Ou apenas divergiram a respeito do verde? De todo modo, parece correto afirmar que, independentemente do posicionamento, não houve arbitrariedade. E o que ficou cabalmente demonstrado é a dificuldade e a complexidade do ato de julgar. Quem o imagina simples, está redondamente enganado.

E já que a ficção foi citada, Michel Laub, um dos maiores escritores da atualidade, intuiu essa intrincada função de julgar na obra “Música Anterior”. Vale a pena, por intermédio desse livro, tentar compreender, longe do muitas vezes enfadonho discurso técnico-jurídico, as circunstâncias de um julgamento.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal



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