Se eu fosse morrer semana que vem.



Eu iria à Brasília protestar. Não com pedras ou coquetéis molotov, nem com palavras de baixo calão, sequer com a máscara do V de vingança ou o tradicional nariz de palhaço. Sim, acho que eu conseguiria resistir ao apelo das calças bufantes, do jaleco amarelo e da bolita vermelha logo abaixo os olhos. Viajaria apenas com a força do meu inconformismo, da minha indignação. As instituições – até aquela que você está pensando – devem ser respeitadas porque permanentes, ao contrário dos ocupantes de certos cargos, tão efêmeros quanto segredo de polichinelo. Mas se me deixassem entrar nalgum gabinete, naqueles gabinetes, eu adoraria dizer a algumas pessoas que as suas decisões – jurídicas, políticas, existenciais – , mais do que mera palhaçada, são risíveis, são patéticas, são desoladoras. Munido da coragem que todo moribundo amealha nos momentos finais, lhes perguntaria se já ouviram falar nas expressões “boa-governança”, “interesse público”, e “empatia”. Principalmente empatia. Cuspindo sangue no tapete, poderia lhes explicar que a palavra designa a aptidão para perceber ou sentir a posição do outro, colocando-se em seu lugar. Sim, porque julga-se, governa-se ou legisla-se para o outro, o que às vezes parece passar despercebido para algumas pessoas que, do planalto, perdem o contato com a planície.

Eu passaria o tempo restante preocupado apenas com meus ( poucos) problemas reais, deixando os ( muitos) imaginários de lado.

Diria a minha família por sete vezes seguida que os amo, já que na semana anterior eu estive ocupado demais para olhá-los nos olhos, e portanto, ocupado demais para proferir as palavras realmente importantes.

Acho que não invadiria o morro mais perigoso da cidade, com colete à prova de balas, cartucheiras atravessadas ao peito e o fuzil de assalto da S.W.A.T, disposto a levar comigo para a terceira margem do rio o maior número de assassinos e barões do crack ( na verdade, mal sei manusear um revólver), mas estando em Brasília, certamente invadiria a mansão funcional da autoridade capaz de incutir em quem decide ( nos que realmente decidem!) a vontade política de acabar com a prescrição intercorrente no direito penal, a progressão descriteriosa para o regime prisional semi-aberto, e rever – rever já! – os parâmetros para a segregação cautelar dos autores de crimes econômico-financeiros.

Pensando bem, acho que eu atiraria ao menos uma pedra. Na janela da diretoria de um desses vários grupos hospitalares que alardeiam disponibilizar 60% de sua capacidade para o SUS ( e vivem se queixando por isso), mas que na hora do “ vamos ver” canalizam para os pobres menos de 1/3 da estrutura – priorizando os particulares e os planos de saúde em grupo ( que cada dia se tornam mais SUS). Uma pedra na pilantropia não resolve nada, mas pelo menos deixa a alma mais leve...

Não voaria à Brasília com termômetro, bolsa de água quente, guarda-chuva e pára-quedas. Nesta minha ultima viagem, eu iria descalço e viajaria mais leve ( esta é inspirada no famoso texto “ Instantes”, atribuído ao Borges mas escrito por Don Herold. No segundo parágrafo também peguei carona com o Borges, digo, com o Don).

Se eu fosse morrer semana que vem, “diria a minha verdade mais calma e claramente”, e escutaria mais os outros, “ mesmo os insensatos e ignorantes, porque eles também têm a sua história” ( ... e esta é do Desiderata – reza a lenda que teria sido encontrado na velha igreja de Baltimore, em 1692, mas ao que tudo indica foi escrito por Max Ehrmann bem depois, em 1927. )

Em tempo: Não estou com o vírus do Ebola, não atravesso o Parque da Redenção de madrugada e tenho a recôndita intenção de conhecer os netos, mas algumas situações e estruturas do Brasil de hoje se confundem com a própria morte: rígidas, imóveis, profundamente assustadoras.

* Marcel Citro de Azevedo é juiz federal e diretor cultural da AJUFERGS.



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