Depois dos embargos infringentes.



Quem espera ler neste espaço uma espécie de louvação sobre a mudança cultural imposta pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do chamado “Mensalão” pode parar por aqui. Tenho minhas dúvidas sobre os efeitos desse julgado no que se refere às relações de políticos e ‘poderosos’ – prefiro o termo ‘financeiramente privilegiados’ – com a coisa pública. Acredito que esses efeitos somente serão perceptíveis com correr do tempo, analisando se a Corte manterá postura mais rigorosa também em outros casos e se os diversos segmentos sociais estarão sensíveis a esse posicionamento.

O enfoque nesta coluna diz com a atuação do STF no plano institucional. Há consenso de que a Corte definitivamente assumiu posição não apenas de guardiã da Constituição, mas também da República. A sociedade, entretanto, ainda que desperta para essa nova situação, passa a impressão de passivamente aceitá-la, pois está a preocupar-se apenas com questões circunstanciais. Há intensas discussões sobre estabelecer critérios outros de escolha de ministros, ou mesmo mandatos temporários. Porém, a respeito da competência exacerbada da Corte, do controle de sua pauta ou sobre a atuação dos ministros, muito pouco.

Atualmente o STF pode julgar qualquer causa. Uma briga de bêbados por uma caixa de fósforos pode ser objeto de julgamento pela Corte. Essa possibilidade, além de prejudicial à democracia, pois confere ao STF intensa carga de poder em franco desequilíbrio entre os Poderes, termina por assoberbá-lo e por transformar os demais órgãos do Poder Judiciário em meras instâncias burocráticas de passagem.

Quantas sessões o julgamento do “Mensalão” tomou dos Ministros? Quantas outras causas de legítima envergadura constitucional poderiam ser apreciadas nesse período? Não seria mais conveniente, por exemplo, que a Constituição atribuísse ao Superior Tribunal de Justiça o julgamento daquele processo, desocupando a pauta do Supremo? Não seria mais adequado transformar o STF em genuína corte constitucional? Mesmo neste caso haveria muito trabalho, considerada a prolixa redação da nossa Constituição, que reputa constitucional uma infinidade de questões. Recentemente o STF julgou o tema da decadência dos benefícios previdenciários concedidos antes de 1997. Não seria mais conveniente que o STJ definisse a matéria? Enquanto o STF não se pronunciava sobre o assunto, Tribunais Federais e Turmas Recursais se limitavam a acondicionar os processos que dele tratavam em escaninhos do esquecimento, passando à sociedade leiga a imagem de julgadores preguiçosos.

Sob outro viés, a burocratização do Poder Judiciário, à exceção do STF, que indica ter abandonado sua atribuição de órgão de cúpula para se tornar um poder a parte, é visível na completa ausência de controle sobre quando os processos serão julgados pela Corte. Algumas formas de fiscalização podem não ser suficientes, mas existem para os juízes. Corregedorias, ouvidorias e metas têm orientado a pauta dos magistrados. Mas e no Supremo, o prezado leitor sabe como funciona? Quais são os critérios que o Presidente da Corte utiliza para pautar esse processo e não aquele outro?

Finalmente, um aspecto que pouco chamou a atenção, mas se afigura suscetível a amplo debate. O STF é também um órgão político, não no sentido partidário, mas no de que algumas questões, a par da técnica jurídica, submetem-se a esse tipo de abordagem. De todo modo, ainda que socadas a golpes de marreta em retóricas jurídicas, a Corte invariavelmente buscou uma aparência de tecnicidade. O que dizer, então, a respeito dos – amplamente anunciados pela imprensa – movimentos de alguns pares de colocar contra a parede o Ministro Celso de Melo quando do seu voto sobre os embargos infringentes. Não teria havido aí uma dissociação da almejada técnica mediante adoção de prática amplamente observável em parlamentos? Uma politização além da conta?

Se de fato quisermos consolidar e aprimorar a democracia neste país já passou da hora de discutirmos o Supremo Tribunal Federal.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal



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