Massa sem autocrítica



Quem é que não gosta da bicicleta? Haverá uma só alma nesta cidade que não ache a magrela cool, ecológica e politicamente correta? Nestes tempos de pluralismo e tolerância, não é legal engajar-se numa causa que promova uma alternativa ao transporte egoístico e individualista representado pelo automóvel, quase sempre ocupado unicamente pelo motorista?

Corta para a Zona Sul de Porto Alegre, quinta-feira 05/12, 20:30. Milhares de motoristas esbaforidos, esgotados, ávidos por chegar em casa após um dia inteiro de trabalho. Centenas de veículos parados na Edvaldo Pereira Paiva, já tradicionalmente engarrafada em função das obras do Beira-Rio e do viaduto que se constrói a passo de tartaruga nas proximidades do Museu Iberê Camargo. Não há a alternativa da Avenida Tronco, cuja obra para viabilizar um novo acesso aos bairros meridionais não sai do papel. O jeito é esperar, e esperar, e esperar mais ainda.

Esperar o quê? Esperar que um grupo de ciclistas desocupe três das quatro pistas que estão bloqueando nas imediações do Barrashopping. Após convocar uma mobilização pela internet para protestar contra “ a mutilação do plano cicloviário”, resolveram transformar o início de noite dos usuários de transporte público e privado inadvertidamente apanhados àquele horário em um teste de paciência infindável. É a velha máxima dos fins justificam os meios: se tenho um fim válido, no caso as ciclovias, então qualquer meio de pressão é válido, mesmo aquele que retira de cidadãos neutros na briga ciclistas x municipalidade o seu mais elementar direito de ir-e-vir.

Direito de ir-e-vir, diga-se de passagem, que já se encontra bastante mitigado por uma cidade paralisada por obras viárias que se arrastam sem previsão real de término. É a chuva, a greve, o aditivo contratual da empreiteira. Agora, mais um elemento para infernizar a vida do porto alegrense: protestos sem aviso prévio, sem hora para acabar e sem nenhum iniciativa das autoridades no sentido de coibi-los ou limitá-los em sua abusividade.

Virou uma epidemia: protesta-se contra a não correção dos salários dos servidores da FASE e bloqueia-se uma pista da avenida. Se é uma causa mais nobre, uma manifestação contra o corte de árvores, por exemplo, aí vale interromper duas pistas. Se o móvel do protesto é a bicicleta, esta instituição cool, ecológica e politicamente correta, então a autorização tácita é bloquear ¾ do caminho, e quem for contra é um direitista reacionário desprovido de consciência social.

De fato, perguntei a um agente da EPTC se não iriam fazer nada: “se nem a brigada está fazendo, não é nós que vamos fazer”. Indaguei então das providências aos policiais militares que assistiam a toda a confusão – com motoristas buzinando e gritando impropérios e ciclistas vaiando e empurrando as bikes contra os carros. Responderam que a “ordem de cima” era para não intervir.

Não sei de quem partiu a “ordem de cima”, mas reside justamente aí a resistência de algumas autoridades em fazer valer o direito constitucional de ir-e-vir do cidadão e exigir o cumprimento do artigo 5º, XVI da Constituição, que autoriza o protesto pacífico apenas com prévio aviso e em locais abertos ao público, o que obviamente não inclui o meio da avenida. É que reprimir, proibir e regular parece coisa de direita. “Abaixo a repressão” é um mantra que ressoa há décadas em certos corações e mentes, ainda que todos saibam que o exercício ilimitado da liberdade individual – sem nenhum refreio do instinto ou da vontade – acabe descambando para o exercício arbitrário das próprias razões. E não há nada mais reacionário do que a lei do mais forte.

Na verdade, garantir o direito da maioria contra os abusos de uma minoria que quer fazer valer a sua posição a qualquer custo não tem matriz ideológica. É uma conquista das democracias maduras. Só que é preciso ter coragem para dizer “isso passou do limite!”. E fazer valer o limite que a própria Constituição estabeleceu.

Enquanto esta coragem não vem, resta ao cidadão que – sim! – gosta da magrela e que até dá suas pedaladas de vem em quando, apelar aos combativos membros da Massa Crítica-POA, a entidade promotora do evento, que exerça um pouco de autocrítica adequando seu protesto às sofríveis circunstancias da circulação viária. Todas as vias urbanas – e não só as ciclovias – estão obstaculizadas, entupidas, à beira do infarto. Se o objetivo final do movimento é que Porto Alegre “seja uma cidade mais humana”, conforme constou da própria convocação nas redes sociais, então que esta humanidade possa ser direcionada desde já, pelos seus próprios promotores, também aos passageiros que nem sempre podem optar pelo pedal.

* diretor cultural da Associação dos Juízes Federais do RS



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