Briga de Cachorro Grande



Todos devem conhecer famoso adágio popular que recomenda ‘não se meter em briga de cachorro grande’. Pressupõe que, sendo o expectador falante de menor estatura ou mais fraco que os brigões, o melhor é permanecer quieto no seu canto, senão é capaz de ainda levar a pior, ou, no mínimo, uma bordoada.

Esse ditado parece ressoar quando acompanhamos divergência atualmente estabelecida entre os Poderes Legislativo e Judiciário federais. Por conta de algumas decisões do Supremo Tribunal Federal, alguns congressistas partiram para o conflito. Especificamente duas orientações causaram esse mal-estar, a que assegurou, em diversas ocasiões, o direito dos depoentes de permanecerem em silêncio quando inquiridos por comissões parlamentares de inquérito, e aquela que obstaculizou o aumento dos vencimentos dos parlamentares. O revide contra essas supostas agressões à independência do Poder Legislativo, conforme alardeado por alguns deputados, consistirá no engavetamento de alguns projetos de lei de interesse, segundo eles, do Poder Judiciário.

Parece briga de cachorro grande. Ainda assim é preciso arriscar colocando o dedo – e, por enquanto, apenas o indicador – nas feridas abertas, no intuito de compreendê-las e, sendo o caso, justificá-las. Comecemos pelas decisões do STF. Há um dispositivo na Constituição Federal, inscrito entre outros direitos e garantias fundamentais, que resguarda o direito do acusado permanecer em silêncio. Seu fundamento repousa na idéia de que o Estado deve produzir provas suficientes a suprimir a presunção de inocência, não devendo contar, para tanto, com o auxílio do investigado. Quem entende que isso é bobagem, estará consentindo que aparelhos estatais possam utilizar os mais diversos mecanismos para extrair confissões dessas pessoas. E a história parece ter revelado o desacerto desta posição. Basta retomar fatos que aconteceram há cerca de algumas décadas no país, para se ter uma noção do que representa a garantia ao silêncio. Aliás, em alguns sistemas jurídicos estrangeiros, esse direito é elevado à condição de garantidor da própria democracia, como ocorre nos Estados Unidos.

Quanto ao bloqueio judicial à majoração dos vencimentos, continuam valendo os argumentos lançados neste espaço, no dia 25/12/2006 (Essa Nada Mole Vida). Sem embargo, cabe uma descrição sucinta. Na ocasião, o STF simplesmente afirmou que o reajuste não poderia ser procedido sem a observância de determinadas formalidades. Insta ressaltar que tais formalidades são exigidas por ordenamento jurídico em cuja construção os congressistas atuaram sensivelmente. E mesmo na atual conjuntura, seria justificável aumento nos patamares propostos, quando é sabido que a remuneração dos parlamentares não se resume aos vencimentos básicos, porém é acrescida de inúmeras outras parcelas? Se a resposta é negativa, então parece que a proposta apresentava sensível desproporcionalidade, violando, ainda que indiretamente, o princípio da moralidade.

Sendo assim, tudo indica que o Supremo atuou em conformidade às atribuições que lhe consagrou a Constituição Federal. Nessa linha, não há motivo para briga e, portanto, é imotivado qualquer revide. Ainda assim, não é incoerente abstrair a adjetivação das posturas do STF, para examinar se aquela agora perfilhada por alguns congressistas é acertada. O que propõem é que permaneçam sujeitos à inanição alguns projetos de interesse do Judiciário, entre eles alguns que estabelecem a criação de Varas Federais e instituem medidas modernizadoras da prestação jurisdicional.

Opa! Aqui há algo de errado. Se um dos principais fatores que conduzem à morosidade dos julgamentos é a falta de juízes, não estariam esses parlamentares trabalhando pela manutenção desse quadro? O mesmo não ocorre quando retardam a apreciação de projetos que visam desburocratizar o andamento do processo? Isso leva a crer que esses projetos são de interesse da sociedade, e não especificamente do Poder Judiciário. Por conseguinte, se briga de fato houvesse, o revide em questão seria, no mínimo, infeliz.

O mais curioso é que alguns atribuem essa situação ao fato de a Ministra Ellen Gracie, atual presidenta da Corte, não dispor de experiência e mobilidade políticas. Mas quem disse que a Ministra precisa atuar politicamente? Magistrado não é – ou não deve ser – político. Seu compromisso é com a Constituição Federal. Deliberações de conveniência dispõem de palco apropriado que certamente não é o Supremo Tribunal Federal.

O que se nota, em verdade, é uma retórica vazia, pois quem quer imiscuir-se indevidamente em outro Poder são os congressistas que se sentiram lesados pelas decisões do Supremo. E essa ingerência, felizmente obstruída, é que feriria a necessária harmonia e independência entre os Poderes.

Basta mudar o foco de apreciação para constatar que algumas bobagens mal colocadas podem prestar a uma crise institucional, afetando diretamente a população. E quando ela é afetada, os cachorros grandes ficam pequenos. É como se fosse um urso intrometendo-se em briga de cães, não para colocar apenas o dedo. E não podemos esquecer que, nessa alegoria, são os cães que devem obediência ao urso.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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