Jurisprudência e Realidade



Não é novidade, pelo menos nos meios jurídicos, que a nova composição do Supremo Tribunal Federal tem revisto diversas interpretações até então consolidadas na Corte. Talvez o exemplo mais significativo seja a atual posição externada com relação aos chamados crimes hediondos.

Possivelmente em decorrência da distância — visto que se localiza em Brasília, embora possa julgar processos de qualquer canto do país — e também pela impressão de que o Supremo Tribunal Federal somente atue em processos de interesse nacional — o que não é verdadeiro —, algumas pessoas tendem a pensar que as decisões proferidas naquela Corte têm pouca ou nenhuma relevância para suas vidas. Outros, por outro lado, frente a algumas orientações, entendem que os Ministros do Supremo sempre julgam a favor do governo ou dos interesses de setores socialmente mais privilegiados.

Algumas dessas impressões podem corresponder à realidade, contudo apenas em parte. Portanto, é preciso desmistificar algumas dessas aparências que, continuamente repetidas, terminam por se apresentar como irretocáveis verdades.

Muitos juristas têm qualificado de retrógradas certas decisões do Supremo Tribunal Federal, especificamente pelo aspecto social. Por exemplo, há alguns anos a Corte considerou devidos expurgos inflacionários atinentes a apenas dois planos econômicos, para a correção de valores depositados no Fundo de Garantia – FGTS, enquanto outros tribunais entendiam cabíveis cinco índices de correção. O tempo passou, o tempo voou, e a poupança de milhares de trabalhadores ficou numa ruim.

Diversos operadores jurídicos criticavam — e é preciso dizer que ainda criticam — o fato de existir tratamento muito benevolente do Supremo com relação aos crimes correntemente conhecidos por ‘de colarinho branco’, ao mesmo tempo em que atuava mais severamente quanto aos delitos ditos comuns. E não raro podemos identificar aqueles como sendo praticados por indivíduos abastados, enquanto estes, pela patuléia ou ralé. Pois atualmente o Supremo dá sinais de que se o Direito Penal deve ser aplicado com brandura — convicção essa bastante polêmica e que desborda dos objetivos deste texto —, que não haja distinção entre crimes em regra praticados por ricos e aqueles consumados por pobres.

Outro exemplo, que mostra um Supremo mais sensível socialmente, preocupado com a efetividade da Constituição Federal, e menos com tecnicismos legais — que resultavam em quase total desconsideração da mesma Constituição —, está sendo celebrado por inúmeros quadros jurídicos, embora provavelmente desagrade determinados setores governamentais. Decisões monocráticas sinalizam que o entendimento da Corte a respeito do benefício assistencial deve ser reconsiderado.

A Constituição estabelece que deverá ser prestada assistência social a quem dela necessitar, independentemente de vinculação ou contribuições para o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS. Dentre outros objetivos, destaca-se que a pessoa portadora de deficiência ou o idoso, que comprove não possuir meios de prover sua subsistência ou familiares que o façam, têm direito a perceber um salário mínimo mensal, chamado benefício assistencial, nos termos da lei. Foi criada, então, a Lei n. 8.742/93 que estabeleceu como economicamente incapaz o deficiente ou o idoso cuja família percebesse renda inferior a um quarto do salário mínimo por pessoa.

Hipóteses podem traduzir melhor essa explicação técnica. Se um deficiente físico integra família com mais de quatro pessoas, e a renda familiar corresponde a um salário mínimo, teria direito ao benefício assistencial. Outro deficiente, nas mesmas condições, porém cuja família seja composta por outras três pessoas, não terá direito ao benefício, visto que para cada uma delas correspondem exatos um quarto do salário mínimo. Mesmo que esse deficiente comprovasse que parte do rendimento familiar destinava-se, por suposição, à compra de fraldas ou medicamentos necessários ao seu tratamento, não haveria solução. A renda era fator preponderante para definição da incapacidade. Obviamente que muitos juízes, inconformados com esse cenário, proferiam decisões em sentido contrário ao disposto na Lei. Todavia essas decisões poderiam ser levadas ao Supremo Tribunal Federal e, neste caso, inevitavelmente eram revogadas para que se desse estrito cumprimento à Lei.

Felizmente muitos Ministros manifestaram que a Lei não pode sobrepujar a Constituição Federal, cujas determinações são bastante enfáticas no sentido de evitar que permaneçam desamparadas pessoas em situação de risco. Todos devemos respeito à Constituição Federal, inclusive o Presidente da República, os julgadores e os congressistas (deputados e senadores). E com as leis, resultado do trabalho destes últimos, não é diferente.

Como ao Supremo Tribunal Federal compete proteger a Constituição de quaisquer investidas que prejudiquem suas determinações, especialmente aquelas que asseguram direitos individuais, é fácil desmentir a noção de que suas decisões em nada influenciam nossa vida. E de olho em nossa triste realidade social o Supremo indica que para ela estará voltado, independentemente de posições governamentais mais preocupadas com déficits de papel do que com vidas humanas. É o próprio Supremo que está a desconstruir a idéia de que não está atento aos direitos dos economicamente menos privilegiados.

Muitas decisões do Supremo são merecidamente criticadas, e ainda muitas outras deverão o ser. Por outro lado, não é correto deixar de referir que há motivos para qualquer brasileiro sentir orgulho e confiança em sua mais alta Corte.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAIS DO RIO GRANDE DO SUL
Rua Manoelito de Ornellas, 55, Trend City Center - Torre Corporate, sala 1702, Praia de Belas - Porto Alegre, RS, CEP 90110-230.
(51) 99965-1644
ajufergs@ajufergs.org.br