Reações Impensadas



Não raro determinadas civilizações qualificavam indivíduos pertencentes a outros povos de bárbaros, pelo simples fato de pertencerem a outro grupo social. Por exemplo, os gregos, os romanos, os europeus com relação aos habitantes das Américas recém descobertas. Atualmente não é difícil encontrar norte-americanos identificando dessa forma pessoas oriundas do mundo oriental, em especial os muçulmanos.

O vocábulo bárbaro, portanto, pode abarcar inúmeras definições, mas predominantemente é utilizado para definir pessoas ou grupos que não compartilham da cultura de quem assim os qualifica. Poderíamos, então, aproveitando-nos desse conceito mais amplo adjetivar de bárbara a conduta daqueles jovens que, ao roubarem um automóvel, arrastaram por seis ou sete quilômetros uma criança de seis anos, que não conseguiu se desvencilhar do cinto de segurança no momento do assalto?

Depende de como encaramos esses jovens. Pressupondo que conheciam que a criança estava presa ao automóvel — e isso no mínimo caracterizaria o que em linguagem técnica denominamos dolo eventual, ou seja, sabedores que o menino poderia morrer mesmo assim concordaram com essa possibilidade —, vale questionarmos: partilham dos mesmos valores que defendemos? Provavelmente não. Logo, devemos questionar: por que não?

Haveremos, então, de colher inúmeras respostas, sendo difícil afirmar convictamente qual delas seria verdadeira. Poderíamos alegar que o fato decorreu dos inegáveis problemas sociais. É possível. Porém não é suficiente. Afinal se há milhões de brasileiros abaixo da linha da miséria, também é fato que o número de criminosos não corresponde a essa cifra. E desse quadro não decorrem práticas por pessoas de camadas mais privilegiadas, como os chamados crimes do ‘colarinho branco’. Também não foi o problema social que levou outros jovens a tacarem fogo num índio algum tempo atrás.

Outra possibilidade seria admitirmos que vivenciamos momento de transição histórica. Dispensadas as graves discussões sobre a correção do termo, denominemos nossa época de pós-modernidade. Nela convivemos com a balança que busca equilibrar o respeito ao ser humano e a satisfação pessoal pendendo para este lado. Nenhum preceito moral pode nos impedir de alcançar o prazer individual, mesmo que em prejuízo de terceiros. Nesse contexto a violência passa a se apresentar como forma natural de troca, quiçá como linguagem naturalmente utilizada. No entanto isso não faz de todos nós, contemporâneos a essa realidade, capazes de cometer atos de atrocidade como o inicialmente narrado. Mesmo porque há inúmeros fatores que fazem de alguém mais ou menos sujeito a temperamentos hostis. Um deles é a maior ou menor aproximação da violência. Quem dela é vítima contínua, provavelmente aprenderá a retorquir na mesma moeda. E aquele minimamente conhecedor da realidade prisional, está ciente que as cadeias são um dos maiores fomentadores da violência.

Mas se esses ingredientes considerados separadamente não nos conduzem à certeza da delinqüência, por outro lado, se ministrados em conjunto, configuram uma bomba relógio pronta para explodir. Não seria melhor então tentar extirpá-los ou pelo menos minimizá-los?

Há quem defenda a idéia de maior repressão e de diminuição da menoridade penal. Seriam válidos esses tratamentos? Ao que consta, os suspeitos pelo ato em questão são oriundos do sistema carcerário adulto e juvenil — não se assustem os puristas, se a expressão ora empregada é tecnicamente incorreta, reflete a realidade da internação dos adolescentes —, portanto afeitos à linguagem violenta desse sistema. Devem ser de parcas condições econômicas, pois do contrário, por pior que fosse a conduta, não seriam expostos na mídia e também não seriam egressos do sistema prisional — adição esta muita rara de acontecer com pessoas de razoáveis condições econômicas. Pronto! Temos aí aqueles dois elementos para fabricação da nossa bomba-relógio. Ela poderá ter efeito retardado. Não interessa quando sejam soltos, se daqui há dez, vinte, trinta ou cinqüenta anos, esses indivíduos estarão prestes a explodir.

Para quem está habituado à história do Direito Penal, desde o século XVII com Beccaria, há a convicção de que o aumento de pena ou a diminuição da idade penal não resolvem o problema da criminalidade. O criminoso somente realiza sua prática pela certeza da impunidade. Se ele está convicto de que não será surpreendido, ele vai cometer o crime independentemente da pena atribuída. Fosse diferente, os índices de criminalidade, nos lugares onde a pena de morte é adotada, diminuiriam.

O ideal, por conseguinte, parece ser atacar todos os fatores que conduzem alguém à prática de delitos. E nenhum deles encontra solução em punições maiores, inclusive para menores de dezoito anos. Combater a impunidade (e não tratar seletivamente os crimes, quando apenas alguns são punidos) e dispensar tratamento mais humano nos presídios e institutos de internação parecem medidas acertadas. Decerto a alguns pode parecer ultrapassado e piegas a recomendação. Mal alguma vez já dispensamos esse tratamento para verificar se realmente é eficaz?

O episódio inicialmente narrado é lamentável, cruel, triste, censurável, horrível, dantesco, hediondo, injustificável. Como devemos agir? Da mesma forma que os criminosos, mediante o incentivo direto dessas práticas? Reações impensadas não trarão o menino de volta à vida e também não evitarão outras vítimas. Devemos respostas melhores e eficazes à memória de João Hélio Fernandes.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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