Santa Lei!



Em 2006 comemoraram-se os setenta anos da primeira publicação da seminal obra ‘Raízes do Brasil’, de Sergio Buarque de Holanda. Nela o autor apresenta interessantes elementos que compõem a personalidade do brasileiro, fortemente influenciada por fatores herdados dos portugueses. Dentre eles destaca-se a atávica condição de privilegiar o privado em detrimento do público.

Essa relevante constatação tem impulsionado inúmeros estudos, nas mais distintas áreas do pensamento, quer, ao final, com ela concordem ou não. Entretanto, são muito poucos os trabalhos que se debruçam sobre sua pertinência científica no plano jurídico. Obviamente que esse ângulo de análise desinteressa à dogmática. Porém apresenta-se assaz relevante quando relacionada à compreensão da operacionalidade das normas em nosso cotidiano. A partir de conhecimentos aferidos dessa base, seria possível constatar se as leis são eficientemente cumpridas e observadas em determinadas sociedades, em especial, porque é nessa parte que nos interessa, na brasileira.

Não obstante, é possível arriscar algumas conclusões, tendo por orientação as premissas estabelecidas por Sergio Buarque de Holanda e algumas noções empíricas.

Iniciemos pela legislação de trânsito. O advento do Código de Trânsito Brasileiro – CTB, apregoado como instrumento hábil à redução dos acidentes ocorridos no tráfego veicular, não foi suficiente para tal finalidade. Ainda são necessárias campanhas de conscientização para que os motoristas se conduzam de maneira adequada. E condução adequada significa, a rigor, observância das normas do CTB. Cabe, então, indagar: se há lei estabelecendo certas cautelas, sob pena inclusive de punições, é necessário ainda adotar outras providências para que sejam obedecidas essas prescrições? São dispensáveis estudos científicos para demonstrar o rotineiro desrespeito à legislação de trânsito. Basta abrirmos os jornais posteriores aos finais de semana ou feriadões informando outra infinidade de infortúnios que enriquecem as lamentáveis estatísticas do trânsito.

Decerto são várias as causas desses acidentes, como a péssima conservação de rodovias, mas também é inequívoco que a maior parte deles decorre da desconsideração dos mandamentos do CTB. Breve passeio por estradas gaúchas é bastante para mostrar quase que um fascínio por considerar as regras de trânsito meros adornos, cuja utilização depende da conveniência do freguês. Obviamente que nem todos os motoristas comportam-se dessa forma – os quais não raro terminam, infelizmente, por sofrer as conseqüências da conduta daqueles outros – mas quando uma lei é observada por alguns e não por outros, alguma coisa está errada.

Passemos a outro foco de análise. Acompanhamos diariamente pelos noticiários as constantes controvérsias para escolha de quem exercerá determinadas funções públicas. Por exemplo, os cargos ministeriais do governo federal ou a recente eleição para Presidente da Câmara dos Deputados. É pouco provável que alguém tenha identificado, nos respectivos candidatos ou ministeriáveis, de forma inequívoca, vocação ou interesse para resolver os problemas de estado. Todos parecem – e tomara que esta impressão seja incorreta – preocupados apenas com suas carreiras políticas. Isso sem falar em mensaleiros e outros que tais, recebidos em determinados segmentos com pompa e circunstância como heróis da nação.

Tracemos agora um paralelo entre as duas situações. O que assistimos é à celebração da impunidade, ao desapego às normas legais e éticas. E isso não é apenas problema dos políticos – há convencidos, com certa razão, de que eles somente espelham a sociedade. É um problema de educação, que não se resolve, porém, internando crianças em escolas para aprender raiz do quadrado da hipotenusa. É necessário ensinar o respeito ao próximo, a deferência ao público, que para existir pode cercear o privado. Do contrário, não haverá outro caminho senão em direção ao caos.

Em síntese é preciso acabar com o triste axioma do ‘não dá nada’. E não adianta lei que o revogue expressamente.

As leis devem se constituir no passo seguinte ao insucesso em convencer o sujeito a conviver em sociedade respeitando os demais. E uma vez convocadas, disseminando seus efeitos de forma proporcional e razoável, transmitam a certeza de que realmente funciona. Acertemos o enfoque: leis, que, aliás, não faltam no Brasil, não se prestam a corrigir o que está torto, servem para evitar que o correto não distorça. Somente as leis não consertarão nosso país, precisamos antes redimensionar o conceito de ‘homem cordial’.

A obra de Sergio Buarque de Holanda ainda tem muito a nos ensinar.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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