A Justiça e as Justiças



É comum que as pessoas que litiguem na Justiça – seja a Federal ou qualquer outra – e que acabam vendo sua pretensão desatendida, alegarem que não foi feita justiça. Ora, se uma demanda contém, em regra, interesses controversos, alguém sairá derrotado do litígio, e, conseqüentemente, com a impressão de que não foi feita justiça. Então, afinal, o que vem a ser justiça?

Alguém mais afoito poderá afirmar: justiça corresponde ao direito. Se o juiz observou o direito, fez justiça. Será tão fácil assim? Partindo da premissa de que essa afirmativa é correta, o que é o direito?

Sobre justiça e direito muitas linhas já foram escritas. Não será neste singelo texto que o leitor encontrará qualquer resposta a essas indagações. A discussão, pelo menos na cultura ocidental, remonta aos pré-socráticos, passa por pensadores da envergadura de Platão, Sócrates, Kant, Hegel, e muitos outros não menos importantes, e, ainda assim, permanece atual. Ou seja, não há consenso sobre o que venha a ser justiça, bem como há severas divergências sobre o que é direito?

Sendo instáveis esses conceitos, é autorizado concluir que não se confundem com a lei. Imaginemos que, por um descuido, seja aprovada uma lei que autorize o trabalho escravo. Todos os trâmites necessários foram observados e, portanto, ela se encontra em plena vigência. Claro que qualquer pessoa que disponha de informações mínimas sobre o que dita a Constituição Federal afirmará que essa lei é inconstitucional, e que há diversos mecanismos para expurgar essa insanidade do sistema jurídico. Mas enquanto isso não ocorre, em tese um magistrado pode julgar legítima a prestação do trabalho escravo, simplesmente por que aplicou a lei. Porém, fez justiça? Observou o direito? O exemplo parece absurdo, todavia se pensarmos que ainda existe trabalho escravo no Brasil, não é ilógico esperar que os criminosos que exploram esse tipo de atividade venham se sentir injustiçados acaso algum juiz afirme que essa lei é inválida.

No regime nazista implantado na Alemanha houve a edição de inúmeras leis que restringiram sobremaneira determinados grupos sociais. Uma delas, por exemplo, proibia o casamento de gentios com judeus. Contudo não parece evidentemente injusto esse descalabro jurídico, fruto do pensamento doentio predominante na época e local?

Isso não significa que a lei não seja elemento importante da conceituação do direito. Apenas não é o único. E também nada impede que traduza objetivamente o que certa sociedade entenda sobre justiça. Assim, se algumas vezes os conceitos correspondem, por outro lado, não se confundem.

Muitos estudos têm classificado de anti-democrática a possibilidade de um juiz julgar determinada causa em desacordo com a lei, restrição que tem raízes em Montesquieu. Como alguém que não é eleito pode subjugar as diretrizes estabelecidas exatamente por aqueles que representam o povo? Se admitirmos que esses argumentos são verdadeiros, então inapelavelmente estaremos chancelando quaisquer leis por mais desatinadas que possam parecer. E ainda assim, haveremos de enfrentar outro problema grave: a ausência de previsão legal de todos os problemas que são submetidos a julgamento. Nenhum legislador é onisciente o bastante para evitar situações que não encontram qualquer previsão em lei. Se um juiz, numa hipótese dessas, julga a causa de acordo com o mais amplo sentimento de justiça de dada comunidade, não estará praticando direito? Sua decisão é um nada sem qualquer validade jurídica?

Pois bem, se justiça não se confunde com o direito, que por sua vez não se confunde com a lei, como trabalha o juiz? De quais instrumentos dispõe? Na atividade de julgar, o juiz não apenas considera as leis – aqui compreendidas todas as disposições normativas, inclusive a Constituição –, mas igualmente decisões de outros colegas, de outros tribunais, inclusive de outros países (essas decisões quando são repetidas sistematicamente recebem a denominação de jurisprudência). Também são relevantes os trabalhos desenvolvidos pelos doutrinadores, que apresentam noções de justiça e de direito e comentam acerca da correção das leis. E não apenas essas balizas próprias do campo jurídico influenciam o julgador. Decisões justas por vezes necessitam da compreensão acerca de realidades históricas, culturais, econômicas, etc.

A partir dessas considerações, o leitor já pode imaginar quão difícil e complexa é a atividade de julgar.

Sendo difícil, quiçá impossível, pelo menos na atual conjuntura do pensamento jurídico, definir justiça e direito – problema que não atinge apenas os leigos, mas também os que trabalham e estudam na área – devemos desconfiar de algumas críticas contra determinadas decisões. Não serão essas críticas meras manifestações de interesses contrariados? Lembremo-nos que quase sempre uma decisão desagrada alguém. Somente por isso ela não deve ser considerada injusta ou contrária ao direito.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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