Sempre a impunidade



Dia desses, num noticiário televisivo, uma socióloga apresentou estatística estarrecedora: no Rio de Janeiro, mais de noventa por cento dos homicídios permanecem impunes. Pressupondo que seu estudo esteja correto, mais do que lamentar pelos crimes que não recebem resposta adequada do Estado, devemos reconhecer que estamos diante de um fator que incentiva a criminalidade.

Deixando barato que poucos dispensam atenção à afirmação de Cesare Beccaria, há mais de século, de que o criminoso pratica o crime na certeza da impunidade, ainda assim é preciso insistir nessa questão. O problema da criminalidade atual é extremamente grave, o que não quer significar que devamos adotar medidas impensadas para debelar esse cenário. Nesse contexto, se o combate à impunidade não importa certeza de que o problema será resolvido, pelo menos há sinais de que os índices correspondentes poderão ser sensivelmente reduzidos.

Não deixando em branco a visita do presidente norte-americano George W. Bush, o exemplo de sua política nas relações internacionais é significativo de que a impunidade – configurada não apenas quando falham os mecanismos de controle, mas especialmente quando inexistentes esses mesmos mecanismos – enseja as mais diversas práticas perniciosas à convivência pacífica. A mais completa desídia pela preocupação ambiental que afeta o resto do mundo (alguém acredita que, voltando-se o governo republicano para essas questões, esteja mais preocupado com a humanidade do que consigo próprio?) e as diversas violações aos direitos humanos decorrentes de injustificadas invasões (podem ser apontadas, sem pestanejar, duas mãos cheias de nações cujas práticas são equiparáveis, quiçá piores, àquelas comuns ao governo de Saddam Hussein, sem qualquer censura dos seguidores de Bush) demonstram que, na ausência de controle internacional, sente-se à vontade o governo norte-americano para fazer o que quiser.

Não é muito diferente com a criminalidade. Neste caso, a dessemelhança é que, pelo menos no Brasil, existem instrumentos para adversar tais práticas. Que se apresentam inaptos, parece que ninguém está disposto a discutir. E isso acaba por estimular os criminosos. É diversa a situação do sujeito que cogita praticar um delito sabendo que nada acontecerá, daquele cuja probabilidade de sofrer punições é grande.

E essa punição deve ser proporcional à gravidade do crime. Para desencorajar o criminoso, por exemplo, não é adequado exigir-lhe algumas cestas básicas pela prática de homicídio.

Enquanto tergiversarmos com a impunidade, não adianta criarmos penas de papel, cuja severidade reside apenas nas leis penais. De prático nada acontece. Para alguém disposto a cometer uma infração não interessa se a sanção prevista seja prisão de cinco, dez, quinze, vinte, trinta anos. A convicção de que permanecerá impune dispensa esse cálculo. Porém se é grande a probabilidade de ser instado a responder por sua prática, é equivalente a probabilidade de que cogite de não praticar o crime.

Claro que a questão não é tão singela. São inúmeros os fatores que conduzem à criminalidade. Mas, no atual contexto, como anteriormente referido, é possível apostar alto numa queda substancial do número de infrações. Para tanto, seria necessário equipar melhor nossas corporações policiais (aumento do quadro, melhoria de salários, preparação adequada) o que demanda custos. Como hoje são poucos os governantes que dispõem de dinheiro para tais medidas, acabam apelando para o discurso fácil do aumento de penas. Todavia mesmo com orçamento apertado podem ser obtidas boas soluções. Trabalhos que aproximam a comunidade de seus policiais, criando vínculos de confiança recíprocos, como nos casos dos guardas comunitários, são conhecidos dos britânicos com resultados satisfatórios.

Também a legislação precisa ser aprimorada, isso sem falar em aumento de penas ou de gastos. Basta nossos congressistas estarem dispostos a discussões com as autoridades envolvidas no combate à criminalidade (e tenha certeza o leitor que muitos estão). Não adianta culpar os operadores jurídicos se seus instrumentos de trabalho são leis ultrapassadas, próprias de momento histórico passado. Para a criminalidade de hoje dispõe-se de normas – afora alguns aprimoramentos meramente pontuais – criadas para enfrentar inimigos políticos do Estado Novo.

Quem é contrário ao simples aumento de penas não se coaduna com o atual estado da criminalidade no país. Apenas está ciente de que tal medida é inábil. Acreditar menos nos discursos oportunistas e pensar a criminalidade com maior seriedade: está aí o primeiro passo.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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