Vitimados pelo Estado



Semana passada a irmã deste escriba foi assaltada. Enquanto, juntamente com meu cunhado, permaneciam aguardando o sinal de trânsito permitir passagem, foram abordados, possivelmente, pela descrição física, por um adolescente armado de pistola. Resultado: perderam algumas dezenas de reais, celulares e documentos pessoais. De brinde, foram premiados com o triste trauma de ver uma arma de fogo apontada para cabeça.

Preciso alertar que esse fato não mudou minhas convicções. Não pretendo bradar por aumento de pena ou recrudescimento da legislação referente aos adolescentes infratores. Ainda penso que tudo é uma questão de impunidade. Se o aprendiz de assaltante tivesse a convicção de que muito provavelmente fosse identificado e punido, relutaria em praticar o delito. Como sabe que tudo resultou numa simples ocorrência policial a ser transformada num inquérito a ser arquivado, incrementando as estatísticas criminais, indiretamente acaba sendo incentivado em seus intentos.

O leitor deve estar pensando onde pretendo chegar. Afinal, é difícil encontrar alguém que ou não foi vítima direta de roubo, ou, no mínimo, não conheça alguém próximo que já não tenha sido assaltado. Tristemente aprendemos a conviver com essa situação, atualmente corriqueira. No fim das contas, há quem dirá que o fato não foi tão grave, visto que o automóvel não foi levado.

Apenas precisei mencionar o fato porque seus desdobramentos parecem ser ainda mais graves, sob a ótica de desrespeito ao ser humano. Depois de o cidadão contribuinte ser vitimado pelo criminoso – e aqui me permito pequena imprecisão terminológica utilizando a adjetivação mesmo quando se tratar de adolescente – ele passa a ser vitimado também pelo Estado. Exatamente. O Estado, inapto para o cumprimento de sua atribuição de garantir a segurança das pessoas, termina por contribuir para sensação de que somos perfeitos idiotas. Explico.

Como minha irmã teve sua carteira de identidade roubada, precisará de outra. Para isso, terá que pagar uma taxa. Como sua carteira de motorista foi roubada, precisará de outra. Para isso, terá que pagar outra taxa. Como os documentos do veículo foram roubados, precisará de outros. Para isso, terá que pagar mais taxas. Isso mesmo, terá que pagar ao Estado pela ineficiência do mesmo Estado em garantir-lhe segurança.

Mais interessante é que, mesmo pagando ao Estado pelos documentos que não extraviou, mas que lhe foram roubados, precisará esperar alguns bons dias. Como precisa do automóvel para se deslocar, está arriscando a ver o mesmo apreendido, posto que, na hipótese de ser parada por alguma autoridade de trânsito, disporá apenas da certidão de nascimento, do boletim de ocorrência do crime e de uma impressão dos dados do veículo pela internet, documentos insuficientes para comprovar a regularidade do veículo.

Assim, apesar de ter pago ao Estado os impostos referentes ao veículo, sua permissão para dirigir e a emissão dos documentos do automóvel, não poderá utilizá-lo. Isso porque o Estado não foi capaz de impedir que esses documentos fossem roubados.

Prossigamos, porque o surrealismo não se encerra por aí. Esse mesmo Estado possui uma instituição financeira, a qual estimula os gaúchos a utilizarem seus serviços. Todos pagos, diga-se de passagem. Pois junto daqueles documentos, o adolescente infrator também levou o talão de cheques da minha irmã. E para sustar os cheques roubados, ela terá que pagar para o Banco do Estado pelo fato de esse mesmo Estado não garantir-lhe a segurança. Isso sem falar que, depois de uma ligação telefônica, quando possibilitado entabular atencioso diálogo com algumas gravações, teve que se dirigir a sua agência para oficializar a comunicação do roubo. Às pressas, porque foi orientada de que se não estivesse no primeiro horário do primeiro dia útil após o assalto, o banco não se responsabilizaria pelo eventual pagamento dos cheques roubados. Parece estar devendo um favor ao Banco quando em verdade o Banco é que deveria agradecer pelos seus cuidados.

É irresponsável afirmar que não vêm sendo adotadas medidas para conter a criminalidade no Estado. Concordemos ou não com os procedimentos escolhidos é outro problema. Mas a questão da segurança não se limita a impedir que crimes ocorram, porém atuar de forma eficaz em defesa das vítimas quando eles sucedem. Não contra elas. Além do sofrimento físico e psíquico imposto pelo criminoso, não há justificativa para que o Estado alongue o padecimento da vítima.

Situações como a narrada poderiam ser remediadas de formas simples e sem gasto substancial de dinheiro. Bastaria que quando do registro da ocorrência fossem emitidos os documentos no mesmo local ou pelo menos que o fossem de forma provisória. Sem custos à vítima, é óbvio.

Esse cenário é revoltante. Não pode permanecer como está. O Estado não é um ente à parte, presente no momento de exigir obrigações dos cidadãos e ausente quando da sua contrapartida. Os gaúchos não podem continuar a ser tratados como idiotas. Se o Estado é ineficiente para conter a criminalidade, que pelo menos assegure tratamento mais humano às vítimas do crime.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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