Que modelo de Previdência queremos?



Há fases da vida do ser humano que demandam especial atenção, como a infância e a velhice. Aquela por ainda não dispormos dos instrumentos necessários ao enfrentamento dos mais distintos obstáculos impostos pela vida, esta porque a superação destes mesmos obstáculos foram suficientes para nos deixarem cansados e, conseqüentemente, na expectativa de vivermos em tranqüilidade.

Também os aludidos obstáculos podem não ser vencidos, embora já superada a infância, ou ainda não alcançada a velhice. Há fatos imprevisíveis que resultam em extrema limitação, física ou psíquica, do indivíduo. E em virtude dessas restrições, essas pessoas igualmente são passíveis de proteção.

Em tese o Estado abarcou diretamente para si a obrigação de atender às crianças. A outra, dispensada aos idosos e àqueles que sofreram algum infortúnio, assumiu indiretamente, por intermédio da chamada previdência social. Nesses termos, pelo menos no Brasil, a tão só qualidade de infante assegura(ria), os naturais cuidados que essa condição exige. Quanto aos demais, mediante vinculação a sistemas jurídicos específicos, são (ou deveriam ser) disponibilizados meios suficientes à sobrevivência digna, próprias as suas particularidades.

Não é preciso ser especialista, vidente ou qualquer coisa que o valha para constatar que o Estado – em sentido amplo, abrangendo União, Estados-membros e Municípios – não cumpre a contento aquela primeira obrigação. Entretanto o propósito desta coluna não é repetir o que todos sabemos. Porém a título de argumentação, vamos nos permitir ser cínicos o bastante para salientar que crianças não pagam impostos e recolhem contribuições previdenciárias (como são chamadas as contrapartidas pela futura concessão de algum benefício, como aposentadorias, pensões, auxílio-doença, licença-maternidade etc.). Mas e os idosos e vítimas de alguma desventura?

O objetivo do sistema previdenciário residiria no seguinte: os trabalhadores (também compreendidos em sentido amplo, abrangendo empregados, autônomos, servidores públicos etc.) pagam ao Estado para que, em tempo vindouro, esse mesmo Estado lhes assegure certo conforto. Entretanto essa conta pode não fechar, ou seja, os primeiros podem ser restituídos a mais ou a menos pelo segundo. Se alguém durante trinta anos recolheu valor equivalente a 100, poderá ter recebido em aposentadoria apenas 50 quando de sua morte. De outro lado, um terceiro que tenha recolhido os mesmos 100, poderá receber 150. Além disso, nas hipóteses de infortúnios pessoais, como de acidente que resulta na incapacidade física do cidadão trabalhar para o resto da sua vida, poderá ter recolhido 20, com a possibilidade de receber 200.

No entanto situações como essas não passaram despercebidas pelo sistema. Aliás, compõem sua própria lógica. Não por outro motivo que a Constituição Federal tornou partícipes do custeio do sistema também os empregadores e o próprio Estado.

Todavia, enquanto os trabalhadores e os empregadores pagam, o Estado reclama que o sistema é deficitário. Claro que assim o é. Pela mesma razão que poderia ser superavitário, posto que a noção de risco é inerente à idéia de previdência social. É aí que entra a função do Estado de garantir a robustez do sistema mediante o aporte de recursos suficientes para tanto. Não obstante, faz-se de mouco quanto a essa circunstância, além de, atualmente, imputar ao sistema previdenciário boa parte das mazelas em razão das quais deixa de cumprir com suas demais obrigações.

Essa inculpação encontra eco em alguns setores da sociedade. Freqüentemente doutos da área econômica apresentam suas carteiras de formados em Harvard para, em alto e bom som, anunciarem que esse desequilíbrio financeiro é inadmissível.

Não poderia ser diferente. Liberais de plantão não confundem números, mas se atrapalham com a realidade. Por não terem aprendido que existe vida além do mercado, não sabem que o equilíbrio da previdência está em garantir um mínimo de dignidade a quem dela necessita. Desconhecem que eventuais distorções financeiras poderiam ser solucionadas com subsídios estatais, no mais das vezes ínfimos quando comparados com o que se despende com a doutrina do pagamento dos juros, a eles tão cara. Cegados pela luz do pensamento único, nos conduzem há mais de década pelo mesmo caminho cuja chegada parece ser a mesma escuridão na qual eles permanecem vivendo, onde um cifrão, de preferência acompanhado de muitos números, vale mais do que um homem.

Não surpreende, pois, a classificação da Previdência do Estado do Rio Grande do Sul como apresentando um dos piores desempenhos no país segundo ranking elaborado pelo Núcleo Atuarial de Previdência da Universidade do Rio de Janeiro. Afinal apresenta déficit custeado pelo Tesouro do Estado. Nada indica que o Núcleo tenha questionado se um mínimo de dignidade é garantido aos servidores gaúchos, pelo menos em comparação aos Estados que sob sua ótica apresentam melhor desempenho, Roraima, Amazonas e Tocantins.

Para conclusão tão brilhante bastaria um aluno do ensino fundamental, bem versado em matemática. Só faltou o pesquisador que olhasse para o lado e reconhecesse no outro alguém digno de respeito.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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