O furacão de Têmis



Engrossou o caldo para alguns magistrados possivelmente afeitos a práticas criminosas. A revelação pública de investigações acerca de decisões negociadas evidencia que o Poder Judiciário infelizmente não se encontra incólume às investidas da corrupção.

Não obstante, operações como Hurricane e Têmis desvelam alguns paradoxos inerentes ao próprio Poder em questão, os quais, por deliberado ou inconsciente acobertamento de algumas informações, não ensejam à sociedade conhecer o que de fato está acontecendo.

Antes de examiná-los, porém, cabe uma consideração preliminar, a qual, embora óbvia, sempre é necessária a fim de evitar considerações precipitadas, quando não dolosamente maliciosas. O fato de haver alguns envolvidos na corrupção não importa que todo o quadro da magistratura mantenha algum tipo de relação com o crime que não seja o de julgá-lo. Muito pelo contrário. Nunca é demais recordar que qualquer exercício de generalização é, no mínimo, falacioso. No país atuam aproximadamente quinze mil juízes, sendo suficientes os dedos das mãos para contar aqueles afinados com infrações penais.

Agora o paradoxo. Incumbe a alguns dos outros milhares de magistrados, alheios a essas práticas, os julgamentos daqueles que as adotam. Ou seja, o crime praticado por magistrado será julgado por outro integrante do Poder Judiciário.

Incluído no mocotó processual o ingrediente chamado prisão, excetuadas as hipóteses de flagrante, a Constituição Federal determina que somente poderá ser decretada por juiz com competência para tanto. Assim, apesar do destacado trabalho da Polícia Federal, a prisão dos magistrados envolvidos na operação Hurricane decorreu de ordem expressa do Supremo Tribunal Federal, especificamente pela pena do Ministro Cezar Peluso. Isso mesmo! Foi o próprio Poder Judiciário que determinou a prisão de alguns dos seus integrantes pela suspeita de envolvimento com o crime. Haveria aí corporativismo?

Entre outras espécies, o ordenamento jurídico brasileiro prevê a prisão preventiva e a prisão temporária. Ambas ocorrem antes do trânsito em julgado da decisão condenatória, isto é, antes de o sujeito restar irremediavelmente condenado, sem possibilidade de recorrer. Grosso modo, a primeira presta-se a auxiliar a autoridade policial na colheita de provas – o que, sem a prisão, poderia ser prejudicado –, enquanto a segunda, para garantir que, sendo o caso, haja condenação e que, ao final, essa mesma condenação seja cumprida. Cumpridos os fins da prisão temporária, passa-se ao exame da preventiva, sendo neste momento que o Ministro Peluso entendeu pela ausência dos seus pressupostos.

Argumenta-se que os suspeitos permaneceram poucos dias presos. Fato indiscutível. Todavia, antes de se indagar o porquê da liberação, passou-se a qualificá-la de mero exercício de corporativismo. Mas basta investigar a jurisprudência do Supremo para concluir que a decisão do Ministro Peluso pautou-se exatamente por essa iterativa orientação. Pode-se criticar severamente esse posicionamento, e muitos estudiosos e operadores o fazem, porém simplesmente taxá-lo de corporativo é desconhecer a realidade jurídica do Brasil e, levianamente, macular a imagem de um julgador sob a equivocada e açodada premissa generalizante de que são ‘todos farinha do mesmo saco’.

Como afirma sábio ditado popular, ‘devagar com o andor que o santo é de barro’. A supressão de garantias constitucionais que muitos têm preconizado poderá resultar em prejuízo dos seus atuais algozes. Evitar o arbítrio não significa compactuar com a corrupção. Importa apenas separar o criminoso do inocente, confusão infelizmente comum em períodos de perseguição política, religiosa ou midiática. É nítido o anseio dos brasileiros por maior justiça social, a qual necessariamente passa pelo estancamento da hemorragia de benefícios e privilégios indevidos. Contudo esse anseio não pode voltar-se contra garantias individuais duramente conquistadas ao longo da história.

Não são poucos os que compartilham da percepção comum de que a repressão penal alcança somente os menos privilegiados economicamente. Entretanto assim não sucede por corporativismo. O fato dessas pessoas não serem julgadas pelo Supremo, ao contrário dos endinheirados, decorre mais da ilogicidade do sistema do que propriamente da ausência de vontade dos julgadores de mandarem para cadeia os praticantes da denominada ‘criminalidade do colarinho branco’.

É evidente que a magistratura também é em parte responsável por esse sentimento de impunidade com relação ao pessoal do andar de cima, o que não quer dizer que essa situação não esteja sendo transformada. A disposição do Poder Judiciário de cortar a própria carne para expungir esses miasmas denota a idéia de que há sensíveis mudanças em andamento.

A sociedade precisa saber que ninguém mais do que os magistrados lastimam o fato de alguns poucos de seus pares estarem envolvidos com a corrupção. E é consenso entre os julgadores que os corruptos devam ser severamente punidos. Apenas aguardam e defendem que a punição suceda em respeito às garantias constitucionais que se comprometeram proteger.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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