Imexível sim, intocável não



Em certa ocasião, um Ministro de Estado, da famigerada Era Collor, utilizou a expressão imexível. Na oportunidade, muito se brincou a respeito do neologismo da autoridade. Todavia tenha ele responsabilidade ou não, o fato é que o vocábulo já é admitido pelo Dicionário Houaiss. E ainda que sonoramente desagradável, parece expressar melhor a idéia a qual se propõe do que o pedante termo inamovível.

Os magistrados são inamovíveis, ou imexíveis, porque a Constituição Federal lhes garante a inamovibilidade (para não ofender nosso léxico, deixo em branco a expressão que seria correspondente). Mas será que essa é uma garantia assegurada aos magistrados, ou, em verdade, se converte em garantia do jurisdicionado, ou seja, do cidadão que procura a Justiça para solução de determinado caso?

A indagação é importante menos por configurar, a inamovibilidade, instituto jurídico de matriz técnica ou acadêmica do que por refletir diretamente a realização do Estado Democrático de Direito. Ademais se mostra especialmente oportuna por conta da divulgação de algumas apurações pela denominada ‘Operação Hurricane’, encetada pela Polícia Federal após determinação do Supremo Tribunal Federal.

Foram veiculados pela imprensa excertos das interceptações telefônicas, judicialmente autorizadas, dentre os quais foi destacado diálogo entabulado por advogada e desembargador federal investigados. Nele, a primeira refere a necessidade de algo próximo a eliminar uma juíza federal, enquanto o segundo, que esta mesma magistrada deveria ser mandada para o lugar mais longe possível. Isso porque a julgadora, alheia aos ilegítimos interesses dos conversadores, proferia decisões contrárias aos executores e colaboradores destes mesmos interesses. Sendo assim, porque seu trabalho opunha-se ao tranqüilo desenvolver supostamente criminoso, deveria ser afastada. E só não o foi porque a Constituição assegura sua inamovibilidade.

Como se espera do Poder Judiciário decisões conformes ao Direito, quem ganhou com a garantia da inamovibilidade foi a própria sociedade, pois restou assegurado a continuidade do trabalho contrário à alegada criminalidade organizada.

Não sejamos ingênuos a ponto de pensar que os mais variados mecanismos de poder não influenciam na dinâmica do Judiciário. Com o intuito de evitar tais ingerências é que a Constituição estabelece garantias, não ao juiz, mas aos cidadãos, que dessa forma podem ser alcançados por decisões imparciais.

Portanto, mais do que uma garantia, a inamovibilidade erige-se à condição de necessidade para o tráfego regular das decisões judiciais. Do contrário, a decisão do juiz da mais insignificante e distante comarca do país, embora quase consensualmente correta e necessária, que contrariar os interesses do prefeito, do governador, do ‘coronel’, do empresário, resultará no afastamento do seu prolator.

Suponhamos que inexistisse a garantia em comento. A juíza, que tanto incomodava a organização criminosa, poderia ser afastada do processo, senão para nele ingressar alguém afeito aos interesses da organização, pelo menos de maneira a evitar que fosse conduzido de adequada e eficientemente.

Tal quadro, no entanto, não implica que o juiz possa fazer o que bem entender. As duas faces da moeda devem ser observadas. Assim como influências perniciosas ao julgamento imparcial podem advir de fatores externos, também pode ocorrer o inverso. Nada obsta que determinado magistrado, em razão da localidade em que exerce suas funções, mantenha conduta incompatível com a necessária imparcialidade do Juízo. Neste caso, a Constituição Federal prevê mecanismos que asseguram o afastamento do julgador. Mas é importante destacar que a motivação é completamente distinta. Num caso o julgador mantém postura de imparcialidade, e fatores estranhos é que pretendem alterar essa forma de condução do processo. Na outra hipótese, é o próprio julgador que, por motivos vários, mantém-se alheio à necessária isenção.

A ciência jurídica demonstrou suficientemente que o juiz não dispõe de resposta única para solucionar os casos concretos que lhe são submetidos. Cada demanda apresenta número variado de soluções, incumbindo ao magistrado optar por aquela que lhe pareça melhor corresponder aos ideais de justiça. Nesse trabalho, o juiz normalmente desagrada interesses. Faz parte do jogo democrático, cuja regra primordial é assegurar a imparcialidade. Se esta não é observada, não é necessário nem perder tempo com processo. Basta determinar a prevalência do lado para qual se inclina o julgador.

A inamovibilidade, pois, é instrumento assecuratório de julgamento imparcial. Não é privilégio do juiz. É garantia da sociedade. É por isso que os juízes são imexíveis, porém não intocáveis. A fórmula é comprovada pela realidade carioca: a juíza imparcial permanecerá exercendo suas atividades de forma destemida e reconhecida pelo público, enquanto, acaso comprovadas parcialidades criminosas, será afastado o outro.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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