Estado de Direito ou Terrorismo Estatal



Encontra-se em cartaz em alguns cinemas da capital dos gaúchos o documentário ‘Hércules 56’. Narra a história dos presos políticos que foram conduzidos ao México, como condição para libertação do então embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, seqüestrado por grupos revolucionários.

Trata-se de outra importante produção que contribui para reflexão acerca do recente e infeliz período de nossa história constitucional. Associa-se à já extensa bibliografia e à razoável filmografia sobre o tema. Ao se debruçarem sobre importantes informações históricas, nos permitem conhecer contexto bastante diferente do atual. E é relevante perceber o que aconteceu exatamente para evitar que tais circunstâncias se repitam, não obstante o equivocado saudosismo manifestado por alguns. Mais do que isso, precisamos ter o cuidado de distinguir situações similares àquelas vivenciadas naquele período de terror estatal, de algumas que agora presenciamos, ao vivo e a cores.
Por conveniência pessoal ou corporativa não são poucos os que têm se manifestado contrários a determinadas operações realizadas pela Polícia Federal, sob o argumento de que estamos abdicando do estado democrático de direito e retomando as práticas adotadas a partir do recrudescimento da ditadura instaurada em meados da década de sessenta. Essa confusão é inadmissível.

Em tempos idos, por posicionamento ou ideologia política o cidadão era detido sem receber maiores explicações. Prisões sucediam ao alvedrio de autoridades policiais e militares, sem conhecimento do Poder Judiciário. Pessoas encarceradas permaneciam incomunicáveis, desconhecendo os motivos da prisão. Familiares desesperados ignoravam a situação do preso. Isso é terror! É o estado-leviatã investindo contra cidadãos por questões políticas, sem assegurar o contraditório e o exercício de defesa. Situações como essa é que devemos combater. E é para evitá-las que a Constituição Federal prescreve normas assecuratórias, denominadas direitos e garantias individuais.

Contudo esses mesmos direitos e garantias individuais não são absolutos. Mais do que assegurar a individualidade sadia, têm por objetivo também realizar o estado democrático de direito. Assim, quando são utilizados para a realização de atividades criminosas, devem ceder espaço em benefício da coletividade.

Com a finalidade de evitar falsos entendimentos, é preciso reiterar a assertiva anterior: não devem ser relativizados pura e simplesmente direitos e garantias individuais para satisfação de consensos ou maiorias ocasionais; devem ser relativizados, sim, quando manuseados como instrumentos da prática de determinadas infrações penais.
Exemplos concretos podem esclarecer melhor a situação. Não se concebe em estados democráticos de direito a violação de direitos assegurados aos advogados. É por isso que a esses profissionais é assegurada inviolabilidade de seus escritórios. No entanto, acaso utilizem esses espaços não para o exercício de defesa de seus clientes, mas para a prática de crimes, então parece óbvio que de inviolabilidade profissional não se deve cogitar. Uma coisa é o advogado que recolhe o maior número possível de elementos probatórios com o escopo de defender um acusado, daquele que elabora documentos falsos para assegurar a prática de um ilícito.

Igualmente a vitaliciedade dos magistrados. A Constituição Federal, visando assegurar a independência dos juízes, garante-lhes que não serão afastados de suas funções. Entretanto, quando certo julgador pratica crimes procurando resguardar-se de eventual insucesso da empreitada, contando com a garantia de permanecer no cargo, ainda que aposentado, é óbvio que o objetivo constitucional está sendo desvirtuado. Nessa hipótese, a garantia deve ceder espaço a outros princípios constitucionais.

Afora o lamentável teor midiático impresso em algumas ações, há que se reconhecer que a atuação contemporânea da Polícia Federal não deve ser comparada com aquelas dos tempos do DOPS. Nada a ver uma coisa com a outra. Naquela época era quase inexistente o controle judicial que hoje tempera as operações. Hoje o sujeito sabe o porquê de estar sendo preso. Pode contatar seu advogado e seus familiares. Ao contrário do que ocorria no período de exceção. A comparação entre uma situação e outra é, no mínimo, uma heresia histórica.

Um depoimento da única presa política trocada pelo embaixador é muito significativo. A certa altura do filme ela fala sobre as mentiras que, não desmentidas, terminam por se tornar verdades incontestes. Podemos e devemos debater as recentes ações da Polícia Federal. Afinal vivemos ou não em um estado democrático de direito? Porém precisamos ter cautela com algumas opiniões, mais preocupadas com interesses pessoais do que com este mesmo estado democrático de direito.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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