Corrupção nossa de cada dia
Em ‘Homenagem ao Malandro’, Chico Buarque menciona diversos tipos de malandragem, e satiriza atribuindo a categoria de federal a certos malandros. A licença poética permite tais distinções, pois não há fronteiras que possam conter a arte, em especial a de um dos gênios da música brasileira.
Fato é que existe diferença entre os efeitos provocados pela malandragem, se empregarmos o vocábulo, dentre as diversas acepções que admite, no sentido de manobras enganosas para ludibriar alguém. Há o falso malandro que, segundo conhecido bordão, escorrega na própria malandragem e termina por prejudicar senão a ele próprio. Também existe o malandro-agulha, um mero egocêntrico a quem ninguém dispensa atenção. Além de muitos outros mais.
Mas num nÃvel bem mais avançado há o malandro profissional. Este inspira mais cuidados do que qualquer outro porque causa sérios prejuÃzos. Desde o hábil estelionatário até o mais sutil criminoso do colarinho branco, todos são grandes malandros. Muitos fazem disso seu modo habitual de vida, seja tornando a malandragem seu ganha-pão, seja fazendo do seu ganha-pão um modo de praticar suas malandragens. Bingo! Chico acertou em cheio! Há sim malandros profissionais!
Não será por isso que muita gente leve a sério a canção do Chico, considerando-a mais um tratado moral do que uma obra musical? Parece não ser possÃvel pensar noutra hipótese, quando há pessoas que acreditam que a corrupção encontra-se restrita a determinada área da administração pública. Sim! Há os que crêem piamente que só existe corrupto federal!
Como se deve continuar acreditando na bondade humana – apesar dos inumeráveis argumentos e exemplos para pensar diversamente –, podemos ter razões para acreditar que aqueles que referem a existência de corrupção apenas no plano federal – mais especificamente, apenas no Judiciário federal – tenham por fundamento uma mutilada interpretação da música do Chico Buarque. É no mÃnimo deseducado imaginar que essas pessoas, sabedoras que não se encontram incólumes à corrupção, prefiram partir ao ataque contra os outros do que cuidar de suas próprias feridas. Outra vez recorrendo à s artes, a literatura é farta de exemplos dos covardes que pretendem expiar suas culpas condenando a culpa dos outros.
Por outro lado, há o problema da omissão deliberada. Há aqueles que preferem não interferir em certas questões para simplesmente não provarem os dissabores próprios dos embates polÃticos. Tais posturas levam à corrosão do debate público. Por isso é cinismo alegar que apenas os que atuam em nÃvel federal é que devem tratar dos males que aà sucedem.
A corrupção é problema que deve ser combatido por todos os interessados, nada mais nada menos que por toda a sociedade brasileira, para a qual existe e deve estar voltada a administração pública. Corrupção é imperfeição social que deve ser debelada mediante o esforço de todos. É problema que atingiu, atinge e atingirá todos os organismos sociais, com maior ou menor intensidade, em conformidade às variedades culturais que os orientam.
Não há corrupção federal, estadual ou municipal. A continuarmos pensando que o problema é da União, do Estado X ou do MunicÃpio Y, e que cada qual o resolva da melhor forma que lhe aprouver, estaremos investindo contra nossa própria cidadania. O mesmo acontece quando preferimos empurrar nossos problemas para debaixo do tapete, chamando a atenção dos outros para os problemas alheios, como um empresário francês que, para desviar as atenções dos baixos salários que paga a seus empregados, acusasse os norte-americanos de praticar capitalismo selvagem.
É por isso que casos como o de corrupção do Tribunal de Justiça de Rondônia, com a prisão de seu presidente pela chamada ‘Operação Dominó’, é problema de todos os brasileiros (exemplo, aliás, bastante ilustrativo de que o problema não é apenas federal). Por isso que casos como o de Nicolau dos Santos Neto, que desviou recursos do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, é de todos os brasileiros. E é por isso que a corrupção de magistrados federais é problema de todos os brasileiros.
É esperançoso – pelo menos para quem acredita que possamos construir uma nação mais justa e solidária – observar diversas organizações de classe conclamando a sociedade para a necessidade de lutar contra a corrupção. No mÃnimo seus reclamos se prestarão a abafar os gritos dos acusadores de plantão e omissos de carteirinha.
Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS