Democracia capenga



Em meados dos anos oitenta, depois de vinte anos vivendo em estado de exceção, a sociedade brasileira pode acompanhar a escolha de um presidente republicano civil. No entanto, sem eleições, uma vez que frustrado o movimento ‘Diretas Já’. Passados mais alguns anos, finalmente o brasileiro pôde, diretamente, escolher seu mandatário para a esfera de governo federal.

Contudo, mais do que perder a oportunidade de eleger nosso presidente, parece que perdemos o trem da história. Mérito da ditadura que então se despedia do poder. Além de esvaziar quase que por completo a participação política ativa, convenceu-nos de que democracia se faz apenas com eleições. Atualmente existe um consenso tácito de que basta, de dois em dois anos, elegermos alguns políticos e pronto, está encerrado o processo democrático. Consenso esse que termina acobertado pela falácia de que, não aprovada a atuação do eleito, basta alijá-lo no próximo certame.

Nesse contexto criou-se a figura do político profissional altivo. Não são homens comuns. São indivíduos íntegros, de condutas ilibadas, no exercício da atividade política não por vocação, mas por exigência dos eleitores. Em sendo assim, uma vez eleitos, recebem benção divina para fazer o que quiserem. Quanto aos eleitores, bem, nas próximas eleições uns beijinhos aqui, uns abracinhos acolá, um empreguinho para um e um churrasquinho para outro. E a tragédia se repete.

Não pode ser outra a explicação com relação ao que se tem acompanhado no Congresso Nacional. Por exemplo, o Presidente do Senado. Oriundo da tropa de choque de um anterior presidente impedido (aliás, eleito senador), está lá há anos. Expressão tranqüila, gestos de gentleman, sempre muito bem vestido. Imagem de estadista. Mas quando é para explicar publicamente seus rendimentos tudo fica muito nebuloso. Explicações inverossímeis são premiadas com tapinhas nas costas de seus pares, quando não com compaixão e solidariedade daqueles incumbidos de investigar o que de fato aconteceu. Nada de ilícito pode ter ocorrido, mas os argumentos apresentados poderiam ser bem mais convincentes para dissipar qualquer suspeita. É o mínimo que a sociedade brasileira merece.

Mais curioso é que se o falso malandro é confundido com um punguista, o benefício da dúvida fica para depois. Antes tem que prestar esclarecimentos na delegacia, para o promotor e para o juiz. Provavelmente, depois de ter também levado alguns tapinhas, claro que com um pouco mais de força e não exatamente nas costas. Ao final, reconhecido inocente, sobra-lhe reclamar para o padre, ao pai-de-santo ou ao pastor. Depois de um tempo, assiste pela televisão os mesmos de sempre pedindo seu voto. E a ciranda acaba se repetindo.

Essa situação recorrente sucede porque ainda convivemos com a idéia de que democracia se faz apenas pelas eleições. Não! Isso é apenas parte da democracia. E convenhamos, parte essencial. Ruim com ela, imagine sem.

Temos que nos conscientizar de que os poderes públicos atuam para o cidadão. Neles incluídos os políticos eleitos. Não estão lá a fazer qualquer favor para a sociedade. Apenas pelo fato de ser inviável todos disporem diretamente sobre as questões públicas é que existe o mecanismo da representação. Por isso a necessidade de pleno desenvolvimento da cidadania.

A participação em órgãos de representatividade social ou profissional, de organizações ou associações as mais diversas, por exemplo, são formas de exercício da democracia que têm se mostrado eficazes em diversos países ditos desenvolvidos. Nestes, a consciência cidadã extrapola a noção de que somente políticos profissionais estão autorizados a determinar o andamento das questões públicas.

É autorizado supor que, se a sociedade civil se articulasse para exigir explicações convincentes do Presidente do Senado, certamente não estaríamos fazendo papel de bobos.

Mas não apenas isso. Comparado à construção de pontes no meio do nada, o fato de alguém arcar com as obrigações paternas de outrem fica relegado à condição de piada, desde que, obviamente, não haja contrapartida pública para esse favor. Pois se a sociedade exercesse maior controle a respeito dos gastos públicos possivelmente não acompanhássemos, constrangidos, os reiterados desvios de verbas.

Essa participação ativa e constante não quer significar que a atuação dos políticos profissionais seja dispensável. Mesmo porque a figura de homens públicos de escol é indispensável no realizar democrático. E muitos dos políticos que hoje se encontram no poder estão nessa categoria. Apenas não são suficientes para a desejada construção de um país melhor.

Certamente há muito por fazer. E ninguém, sozinho, pode fazê-lo. Essa é uma responsabilidade de todos nós brasileiros. Obra que, no entanto, não se resume a apertar algumas teclinhas a cada dois anos.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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