O judiciário não sabe se defender



É inequívoco que o Poder Judiciário não está alheio a problemas. Alguns casos recentemente noticiados demonstram não ser infenso ao talvez maior dos males da administração pública, a corrupção. Mas apesar das inúmeras dificuldades que enfrenta, não parece arriscado apostar que, no plano ético, ainda se apresenta como o menos suscetível às maracutaias do dia-a-dia.

Algumas pessoas têm inadvertida ou propositadamente – hipótese em que seu compromisso com a ética esfacelou-se – utilizado o falso jargão de que ‘a Polícia prende e a Justiça solta’. Pura ficção de causar inveja a Steven Spielberg. Decerto podemos encontrar aqui ou acolá casos em que houve a soltura indevida de um preso, em óbvia afronta à lógica do sistema processual.

No geral, entretanto, o que se verifica são decisões baseadas na lei ou em orientações adotadas em outras diversas decisões precedentes (o que se conhece por jurisprudência). Certamente que essas decisões podem e devem ser censuradas. A crítica construtiva é essencial ao aprimoramento do sistema jurídico. Todavia isso não autoriza qualificar os policiais de mocinhos e os juízes de bandidos.

Será que essas pessoas já cogitaram que as decisões de soltura podem decorrer da circunstância de as prisões serem ilegais ou contrárias à jurisprudência – fonte de interpretação do direito que deve ser conhecida pelas polícias?

Esses mesmos indivíduos parecem desconhecer que, em grande parte dos casos, as prisões decorrem de ordens judiciais. Como essas decisões estão sujeitas a recursos, existe a probabilidade de algumas delas serem modificadas. É natural que isso ocorra, não apenas no Brasil, mas em qualquer outro país comprometido com princípios democráticos. Os juízes, como seres humanos que são, podem errar. E os recursos têm por objetivo exatamente superar esses equívocos.

E por serem humanos, os juízes não são deuses com o dom da onisciência. Não sabem de tudo e de todos. Por conseqüência, suas decisões são escoradas na interpretação que retiram do processo. Pode ser lastimável para quem pensa que a vida se resolve em meros cálculos de dois mais dois igual a quatro, mas o fato é que essas provas podem ensejar mais de uma solução. Em se tratando de prisão, o exame das provas pode autorizar ou a manutenção ou a soltura do preso.

Assim, com base nas provas, o delegado de polícia pode solicitar, o procurador da República ou o promotor concordar e o juiz decretar a prisão de alguém. Sendo autorizado ao preso recorrer, os magistrados que analisarem seu recurso podem entender que essas mesmas provas não autorizam a prisão. Como essa não é a regra, porque os julgadores do recurso podem decidir que o sujeito permaneça preso, o infeliz jargão implode.

Será que os divulgadores do jargão dispõem de alguma informação estatística a respeito de quantas prisões são decretadas e depois revogadas? Ou será que se baseiam apenas em casos esporádicos veiculados na imprensa?

Se a resposta à segunda indagação é positiva, deverão provar do próprio veneno. Para tanto, basta invocar a Operação Hurricane que redundou na prisão de juízes. Prisão cautelar e não definitiva. Prisão que foi decretada por uma juíza. Posteriormente o Supremo Tribunal Federal decidiu pela soltura desses magistrados. E por quê? Pelo simples motivo de o Supremo entender que a presunção de inocência é absoluta, e que esses juízes, como qualquer outro cidadão, devem responder ao processo em liberdade, exceto se houvesse algum motivo que justificasse a prisão. A juíza que a decretou entendeu que existiam esses motivos, o Supremo não.

Será então que realmente o ‘Judiciário solta’? Será que o divulgador do jargão, acaso examinasse as provas e a jurisprudência, não poderia afirmar ser possível decidir pela soltura ou pela prisão?

Ele pode inclusive se convencer de que a decisão do Supremo está errada, mas que não se prestou a beneficiar ninguém, pois simplesmente obedeceu à lógica que o Tribunal aplica a esse tipo de caso.

A situação, portanto, é absolutamente distinta daquela que se acompanha atualmente no Senado Federal. Lá a tentativa de encobrir a necessidade de investigação – nem se fala ainda em eventual condenação – sobre a conduta de um de seus membros é injustificável. Neste caso não existe lei ou jurisprudência a comandar as consciências dos senadores como comandam as decisões dos juízes.

Uma das maiores deficiências do Poder Judiciário é a forma inapropriada como pretende fazer ou faz chegar ao público sua atuação. Mais do que isso, ainda não aprendeu a se defender de ataques inescrupulosos. Paulatinamente esse quadro está se alterando. Mas até que esteja definitivamente modificado, teremos que conviver com jargões mentirosos cuja pretensão é transformar subrepticiamente interesses escusos em axiomas incontestes.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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