As sandálias do pescador



Atentando-se à ética profissional, não cabe adjetivar fato que foi notícia na semana que passou: na Justiça do Trabalho do Paraná, um magistrado, por entender que houve desrespeito ao Poder Judiciário, encerrou a audiência porque uma das partes calçava chinelos de dedo.

Mas ainda que indevido formar qualquer juízo de valor sobre este fato concreto, mesmo porque não se indagou acerca de suas verdadeiras circunstâncias, nada impede que se façam comentários com base em premissas hipotéticas.

Quem está acostumado às lides forenses, já presenciou ou teve conhecimento por terceiros de situações em que, deliberadamente ou não, um dos participantes de alguma audiência, provocou desconforto nos demais. É possível cogitar da testemunha que, na oportunidade de seu depoimento, não retirou os óculos escuros, irritando o juiz; o advogado que colou em seu casaco um adesivo contra a pena de morte, cônscio que o promotor é favorável a esse tipo de sanção; ou mesmo o reconhecido endinheirado que comparece vestido com bermudas e sandálias. Não é desarrazoado afirmar que, nessas hipóteses, alguma atitude possa ser adotada pelo magistrado que preside o ato. Todavia fatos como esses são inusitados, raramente ocorrem ou pouco provavelmente ocorrerão.

Não é incomum, por outro lado, presenciar atos em que algum ou ambos os litigantes são pessoas economicamente menos dotadas, financeiramente pouco favorecidas. É despropositado, portanto, exigir desses indivíduos que estejam trajados com o mais caprichoso terno, gravata de bom gosto que combine com as demais vestimentas e sapatos ricamente lustrados. O exemplo parece extremado, mas reclamar que alguém calce sapatos ou tênis, quando é perceptível que a pessoa não os tem, não difere da exigência de gravata quando é presumível que o sujeito possua apenas camisetas. Há dois argumentos para objetar exigências dessa natureza.

Primeiro a natureza do ato judicial. O que a sociedade espera do Poder Judiciário é imparcialidade e idoneidade nos julgamentos. Tais qualidades não são obtidas pelas vestimentas do juiz, dos advogados ou das partes. Certamente que pela solenidade e importância do ato é apropriado que os participantes se vistam na exata medida dessa solenidade e importância. Contudo, sempre de acordo com suas posses. As sandálias usadas por um simples pescador podem ser os bens mais valiosos que ele possui, e que podem ser ostentadas orgulhosamente como compatíveis à relevância do ato que ele presencia. Seu respeito pelo Judiciário não deixará de ser infinitamente maior do que o do empresário adornado com terno importado e sapatos italianos que não dá a mínima importância para o que esta acontecendo.

O segundo argumento é a mais completa ausência de sensibilidade e desrespeito pelo ser humano. Têm aqueles avessos à realidade social que, por freqüentarem bons restaurantes, consumirem em estabelecimentos luxuosos e conduzirem garbosamente seus caros automóveis, entendem que o menino que pede dinheiro na esquina ou os moradores de favelas são resultados não de um processo histórico e econômico iníquos, mas da ausência de caráter ou excesso de preguiça.

O estrago resultante da imbricação desses dois fatores varia desde a atitude impensada do hipotético juiz que não permite que a pessoa calce chinelos de dedos, e sabedor da sua insuficiência de recursos pense que ao menos ela poderia pedir emprestados os sapatos de outrem, até as agressões irrefletidas de alguns acéfalos contra uma empregada doméstica, que, ao alegarem pensar que a vítima fosse uma prostituta, construíram uma das maiores pérolas do absurdo de mau-gosto.

Quer dizer então que se a parte estivesse dolorosamente usando os sapatos do seu vizinho, cujo tamanho é bastante inferior à medida de seus pés, estaria tudo bem? Quer dizer então que se a agredida fosse prostituta estariam justificadas as agressões?

Esses exemplos de desrespeito ao ser humano devem ser distinguidos qualitativamente. No plano objetivo, obviamente que a agressão contra a empregada doméstica merece maior reprimenda, especialmente porque se submeterá à esfera penal. Porém sob a ótica subjetiva, talvez o hipotético juiz seja passível de maior censura. Afinal ele jurou cumprir a Constituição Federal, aquele documentozinho (provavelmente é assim que nosso juiz hipotético a qualifique) que valoriza o respeito ao ser humano e objetiva a construção de uma sociedade menos desigual sob todos os aspectos. Certamente tem melhores condições de prever os efeitos de seus atos do que aqueles jovens imbecis, arremedos de Átila, o Huno.

Tristes tempos os nossos. Aumentam as desigualdades sociais na mesma proporção em que diminui nossa capacidade de nos reconhecermos nos outros.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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