Presunção de Indecência



Já foi referido nesta coluna que o Direito não se resume à lei. O magistrado, ao julgar, orienta-se por regras e princípios. Grosso modo, sem embargo das intensas divergências, podemos identificar as regras com leis bastante específicas, enquanto os princípios, com disposições mais vagas, quando não implícitas no sistema jurídico.

Não é tarefa fácil distinguir princípios de regras. Ou mesmo afirmar quando qual deles deve prevalecer para solução de determinado caso. De qualquer sorte, devemos consentir que Direito não é matemática. Se inevitavelmente dois mais dois é igual a quatro, por vezes uma norma apta a regular certa situação, em razão de algumas circunstâncias, não deve ser aplicada. Ou seja, nenhuma regra ou princípio é absoluto.

O direito à vida, por exemplo, não é absoluto. Inicialmente a afirmativa pode chocar, mas o exame de dois exemplos pode confirmá-la. No ocidente, desconhece-se que algum ordenamento jurídico não admita a legítima defesa. Assim, se alguém, para preservar sua vida, não dispõe de outro caminho se não investir contra a vida do seu agressor, está legitimado pelo Direito a fazê-lo. É costume dizer que ninguém pode dispor de sua vida. Contudo se algum indivíduo, em virtude de suas convicções religiosas, prefere morrer a realizar uma transfusão de sangue necessária para evitar o óbito, ninguém poderá obrigá-lo a adotar este procedimento.

O princípio da presunção da inocência é sem dúvida uma das construções jurídicas mais importantes da humanidade. É impossível dissociar tal conquista do próprio estado democrático de direito. Por intermédio dele são evitadas práticas desumanas decorrentes de ações precipitadas.

No entanto, como qualquer outro princípio, não é absoluto, devendo ser relativizado, especialmente nas hipóteses em que é utilizado de forma abusiva. Nestas situações, aliás, o próprio princípio resta desnaturado. Afinal seu objetivo é preservar os indivíduos de decisões arbitrárias baseadas na afobação, sem que seja possível exercer qualquer defesa. Jamais sua finalidade foi assegurar a impunidade dos ilícitos.

No Brasil, porém, o que se observa é exatamente a indevida manipulação do princípio. Dois aspectos podem ser registrados a esse respeito, o primeiro de caráter jurídico, o outro, de natureza sociológica.

Ainda que seja evidente que determinado sujeito praticou um delito, que todas as provas possíveis de produzir apontem para a certeza de sua condenação, é necessário aguardar o chamado trânsito em julgado, que nada mais é que a impossibilidade de continuar discutindo a causa. Frente ao caótico quadro recursal brasileiro, já se nota que dele pode alguém se apropriar para evitar ao máximo o chamado trânsito em julgado. Um exemplo esclarecerá bem essa situação.

Existem recursos que não admitem a discussão da prova. Entre eles está o recurso extraordinário, apreciado pelo Supremo Tribunal Federal, que somente pode ser apresentado quando a decisão afrontar a Constituição Federal. Imaginemos que alguém é condenado pelo juiz por que cometeu um crime, estando a decisão baseada no depoimento de várias testemunhas e diversos documentos. O condenado recorre ao tribunal, que, julgando seu recurso, conclui exatamente o mesmo que o juiz. Esse sujeito pode ainda interpor o recurso extraordinário, mas o Supremo não avaliará se o juiz e o tribunal concluíram corretamente sobre as provas, somente dirá se a lei em que eles se basearam é constitucional.

É óbvio que esse julgamento do Supremo é importantíssimo. Deixa de sê-lo, no entanto, quando o próprio Supremo já tem decisões apontando que o recurso extraordinário daquele condenado não será acolhido. O que acontece então? Basta que o Supremo diga que o recurso não tem cabimento, para ocorrer o chamado trânsito em julgado.

Ocorre que por inúmeros motivos o Supremo não consegue proferir essa decisão em tempo razoável. Enquanto isso, sob o argumento da presunção da inocência, a sociedade assiste ao espetáculo da impunidade, aguardando apenas a formalidade da decisão cujo resultado já é sabido.

A presunção de inocência, portanto, tem se prestado a uma das mais censuráveis e lamentáveis manipulações do processo, a chamada protelação das decisões. Nestes casos o objetivo não é provar a inocência do cidadão, mas empurrar o processo o máximo possível, até que não possa mais ser aplicada a punição.

O argumento sociológico demanda menos considerações. Como essas manobras exigem dinheiro para contratação de bons profissionais, estão excluídos os pobres. É por isso que para eles a presunção de inocência é praticamente metafórica.

Assim, como a galinha não custa tão caro, o seu ladrão, mesmo vendendo-a, não vai ter dinheiro para isso. Agora se encararmos a galinha não como o alimento de cada dia de alguns poucos, mas como símbolo da loteria ilegal, a coisa muda de figura. Neste caso, dá para bancar os custos da protelação e permanecer com a grossa corrente de ouro pendurada ao pescoço. E, ao sair da cadeia, até abraçar o intérprete de escola de samba que nos aguarda ansiosamente.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAIS DO RIO GRANDE DO SUL
Rua Manoelito de Ornellas, 55, Trend City Center - Torre Corporate, sala 1702, Praia de Belas - Porto Alegre, RS, CEP 90110-230.
(51) 99965-1644
ajufergs@ajufergs.org.br