Brasil, país surrealista



No início do século XX começa a desenhar-se o movimento artístico denominado surrealista, que contaminou as artes plásticas, a literatura, o cinema. Tinha por objetivo expressar o onírico, o subjetivo humano por mais desregrado que fosse, traçando o irreal por meio do absurdo, a fim de revelar a ausência de ordem lógica, moral, política ou social.

Esses pressupostos de caracterização do movimento estão expostos em qualquer manual de história da arte, não constituindo qualquer novidade. O que surpreende, no entanto, é a ausência de qualquer alusão, quando da análise da realidade nacional, ao surrealismo. Vivessem nos dias que correm, Dali, Breton e Buñuel certamente disporiam de vasto material para inspirar suas obras.

É difícil acreditar que vinhos de qualidade possam ser produzidos em regiões inóspitas e sem qualquer tradição na vinicultura. Conseqüentemente, a bebida produzida nesses locais muito provavelmente não custaria mais que aquela originada de Bordeaux. No Brasil, entretanto, é diferente. Aqui o gado bovino de regiões tradicionais vale aproximadamente quatro vezes menos do que o de Alagoas, Estado que, salvo engano, está longe de incluir-se entre os principais produtores pecuários.

É natural o auxílio entre amigos. Em qualquer lugar do mundo. É por isso que a amizade é uma das maiores preciosidades que qualquer ser humano pode obter. Contudo no Brasil têm amizades que extrapolam os limites do bom-senso. Aqui o sujeito pode manter uma relação extraconjugal, que haverá um amigo disposto a obrigar-se pelos compromissos do que ‘pulou a cerca’, especialmente quando da relação resultem filhos. Por pura graciosidade, sem exigir absolutamente nada em troca, neste país há gente disposta a dispor de uma pequena fortuna mensal para resguardar a imagem do amigo.

Por ser extremamente valiosa que é difícil conquistar uma amizade. Mas no Brasil é diferente. O inimigo de ontem é o amigo de hoje. No passado, havia gente ansiosa pela cabeça do amigo atual porque fazia parte da turma collorida. Mas como aqui todo pecado é motivo para perdão, sentam-se à mesa para confraternização o comunista e o conservador, brindando ao pragmatismo oportunista que dispensa compromissos ideológicos ou morais.

No sistema econômico capitalista é normal que, com o passar do tempo, as pessoas agreguem patrimônio. É assim em qualquer lugar do mundo em que se observa esse modelo. Curioso é que, no Brasil, diferentemente de outros lugares, é comum que riquezas pessoais aumentem em proporção geométrica quanto mais o sujeito estiver próximo das relações políticas que circundam as atividades do poder público.

Obviamente que há muitos outros exemplos. Há receio, inclusive, de que o número seja ilimitado.

Mas enquanto esse absurdo espetáculo circense se desenrola, o número de vítimas da violência aumenta em questão se segundos, idosos aceleram a chegada da morte aguardando em filas em busca de assistência – assim como os enfermos que varam madrugadas para atendimento médico de baixa qualidade –, crianças são estimuladas a obter algumas moedas nas esquinas ao invés de freqüentar escolas.

Nesses casos altera-se o ponto de vista. Esses desgraçados e desagradáveis cenários são vistos como surrealistas pelo pessoal dos parágrafos lá de cima. “Não existem, é tudo invenção da imprensa!” E mesmo que existissem devem pensar que o problema não é deles, mais preocupados que estão em continuar sentados nas cadeiras que lhes proporcionam desfrutar dos privilégios que o descaso com o respeitável público proporciona.

No Brasil temos um documento que têm por objetivo inverter esse estado de coisas. Chama-se Constituição. Na maior parte das nações que contam com uma, é normalmente levada a sério. Aqui, depende das circunstâncias.

Conta-se que Getúlio Vargas desejoso por uma medida, foi alertado por um assessor que a lei impedia seu intento, razão pela qual teria afirmado: “A lei, ora a lei!”. Atualmente o produtor do caro bovino alagoano, que, embora enriquecido com essa produção, tem suas obrigações alimentícias pagas pelo amigo empreiteiro, além de contar com o apoio do colega comunista, deve estar dizendo a mesma coisa: “A Constituição, ora a Constituição”.

A arte imita a vida ou a vida imita a arte? É difícil dizer. Fácil é afirmar que a arte que representa a realidade brasileira além de sem graça não passa de traquinagem passível de severa censura.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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