A Filosofia do não dá nada



O ufanismo barato nacional deve estar celebrando seu ingresso no templo das grandes filosofias. Mas ao invés de nosso território ser palco do nascimento e desenvolvimento do pensamento de homens da envergadura de Kant ou Nietzsche, satisfaz-se com o fato de brotarem de um suposto sentimento popular axiomas de duvidosa sabedoria.

Ao lado de pérolas como ‘o importante é levar vantagem em tudo’, ‘sabe com quem está falando’ e ‘jeitinho brasileiro’, inaugura-se, desavergonhadamente, a máxima do ‘não dá nada’. Noutras palavras, tudo é permitido porque ou há alguma forma de esconder o que se fez ou de atribuir a outrem quando o que se fez foi descoberto. E na expressão fez inclua-se as mais variadas omissões.

É por isso que nas estradas brasileiras observam-se as mais freqüentes e absurdas violações à legislação de trânsito. Não dá nada! Os poucos policiais que existem são insuficientes para vigiar a totalidade das rodovias. Além disso, o motorista infrator pensa que se flagrado é capaz de uma singela propina dissipar qualquer resquício da infração.

É por isso que a corrupção assola a administração pública brasileira, em todas as suas instâncias e níveis de poder. O corrupto acredita que sua conduta ilícita passará despercebida. E na remota hipótese de ser descoberto, dispõe dos mais variados subterfúgios, inclusive legais, para escapar das garras da punição.

É por isso que o aeroporto de Congonhas, embora diversos especialistas afirmem a periculosidade de sua utilização para certas aeronaves, continua servindo para pousos e decolagens sem qualquer restrição. É improvável que algo aconteça. Se acontecer, que se dilua a responsabilidade entre várias autoridades e no fim todos fazem de conta que não é problema de ninguém.

Há uma brincadeira infantil chamada ‘batata quente’. Uma das crianças fica incumbida de, sem olhar para os demais participantes, interromper a música que toca no rádio, enquanto estes jogam uma pequena bola uns para os outros. Quando a música parar, quem estiver com a bola é eliminado do jogo.

Para as crianças deve ser bastante divertida. Infelizmente alguns adultos brincam de ‘batata quente’ enquanto a patuléia, tratada como criança, assiste impassível à brincadeira de mau gosto. Pior, neste caso, quando a música cessa, quem está com a bola não é eliminado. Encarna, apenas para permanecermos em terreno lúdico, ‘Gasparzinho, o fantasminha camarada’ e foge de qualquer responsabilidade.

Problema é que a filosofia do não dá nada encerra uma falácia que lhe retira seu fundamento de existência. Dá sim, infelizmente, alguma coisa. Sempre dá! Óbvio que poucas vezes para seu adepto, mas invariavelmente para quem não tem nada a ver com isso.

O acéfalo que desrespeita as leis de trânsito não coloca em risco a própria vida. Se assim fosse, não haveria preocupação. Censurável é quando acaba atingindo terceiros, cujas vidas podem ser ceifadas pela irresponsabilidade. E é exatamente por isso que existem as leis de trânsito. Já que qualquer um tem o direito de fazer com sua vida o que bem entender, desde que não prejudique outrem, é em defesa deste que a legislação tenta disciplinar o tráfego.

Qualquer um pode fazer com o seu dinheiro o que bem entender. Também aqui respeitados os outros. Especialmente o dinheiro dos outros. Como o Estado é de todos os brasileiros, e não de ninguém, o corrupto termina roubando o que é de todos, principalmente daqueles que dependem do Estado para sobreviver. O dinheiro desviado de hoje pode importar, amanhã, na prateleira vazia da farmácia pública. Então, convenhamos, alguma coisa dá.

No caso de Congonhas, alguém pode cogitar que não deu nada para as autoridades responsáveis em zelar pela vida dos outros. Deu exatamente para aqueles que perderam suas vidas. Deu também para os familiares destes. Tudo por conta de estúpidas omissões. E quando se pensa que vai dar alguma coisa para os responsáveis por esse infeliz acidente, por exigência do mais óbvio conceito de justiça, começa o jogo de empurra-empurra. Um aponta para o outro, instaura-se a confusão e tudo fica por isso mesmo.

Um exemplo de que essa filosofia deve solucionar o caso é a imagem captada de alguns assessores da Presidência da República, os quais, segundo o noticiário, comemoravam que o acidente ocorrera por falhas técnicas na aeronave. Seus gestos expressavam exatamente isso: não dá nada! O que menos importa é o sentimento de dor de quem viu seu familiar ou amigo soçobrar. Vale é que não têm nada a ver com isso. Fique o Congonhas em paz que se acontecer alguma outra tragédia haverá alguma forma de se escapar de qualquer responsabilidade.

Não me acusem de exigir a responsabilização de quem quer que seja sem culpa comprovada. Minha formação profissional e valores pessoais me impedem de adotar esse tipo de solução. Apenas desejo que, para todos os envolvidos por ação ou omissão, dê alguma coisa. Tem que dar! Pelo menos para eu continuar acreditando no meu amado país.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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