Privacidade Telefônica



Circula esta semana uma notícia capaz de abalar qualquer país sério. Como estamos no Brasil, corre-se o risco de que tudo fique por isso mesmo e que o próximo escândalo torne o assunto coisa de alguma prateleira empoeirada de biblioteca.

Ministros do Supremo Tribunal Federal, a mais alta corte do sistema judiciário brasileiro, tornaram pública a desconfiança de que seus telefones encontram-se grampeados. Ilicitamente é óbvio. Se a suspeita for comprovada, estaremos diante de outro significativo exemplo da dificuldade de consolidar valores republicanos próprios das nações de inspiração democrática. Não serão poucos aqueles tentados a dizer que ‘o último a sair que apague a luz’.

Ingressando furtivamente na privacidade, por intermédio da interceptação telefônica são obtidas informações externadas apenas pela presunção dos interlocutores de que sua conversa é restrita a ambos. Sendo assim, algumas revelações proferidas em âmbito supostamente particular, que não seriam divulgadas noutras circunstâncias, findam por ser também de conhecimento de terceiros.

Assim, enquanto instrumento eficaz de combate à criminalidade, porquanto através dela são colhidos elementos importantes para comprovação de certos crimes, justifica-se e legitima-se por expressa autorização constitucional, além de exigir prévia autorização judicial. É vedada, portanto, sua utilização para outras finalidades.

Não obstante a proibição, prolifera-se o uso da interceptação para objetivos outros. Nestes casos, sendo ilegal, não pode ser utilizada como meio de prova em um processo. Prestar-se-á, então, apenas para fins escusos, normalmente como meio de chantagem, em prejuízo daqueles cujas conversas foram interceptadas.

Seria possível argumentar com vetusto brocardo popular que ‘quem não deve não teme’? Obviamente que não. Afinal há diálogos que, muito longe de evidenciar qualquer ilícito, são entabulados apenas pela convicção dos interlocutores de que seu teor importa apenas para estes e a mais ninguém. Porém o mais preocupante é que conversas absolutamente despretensiosas podem ser manipuladas, ou precipitadamente utilizadas, para eventual comprovação do que não existe.

Imaginemos que alguma autoridade expressamente mencione que ‘não aceita propina’, e o farsante elabore uma montagem extraindo o advérbio de negação. Vindo a público uma montagem dessas, poderá restar destruída a reputação de um inocente. Outro exemplo não precisa ser conjeturado. Basta mencionar a apressada e indevida divulgação de que o Ministro Gilmar Mendes faria parte de empreitada criminosa, quando em verdade se tratava da participação de alguém homônimo.

Seria muita ingenuidade aventar que essas situações seriam gratuitas. Pelo contrário, pressupõem interesses que o contexto democrático não têm interesse em legitimar e que, por isso mesmo, trabalham para subvertê-lo. Na hipótese anteriormente aventada, a autoridade pública não estaria tentada a ceder a esses interesses a fim de evitar sua descabida exposição? E no caso do Ministro Gilmar Mendes, não teria ele contrariado essas pretensões, e, por elas mesmas, ter seu nome submetido à desconfiança pública sem qualquer justificativa?

Não há dúvidas de que esse é um desvio que ocorre em qualquer lugar do mundo. O problema é que, no Brasil, ele possivelmente atingiu autoridades a quem a Constituição Federal atribui amplos poderes e, na mesma medida, grande responsabilidade. A exigida imparcialidade para resolução dos conflitos que lhe são submetidos poderá restar irremediavelmente afetada se condutas criminosas forem consideradas naturais ou permanecerem impunes.

É imprescindível para a sanidade da democracia brasileira a realização das mais profundas investigações para apurar a informação de interceptações telefônicas ilegais no âmbito do Supremo Tribunal Federal. E, comprovadas as suspeitas, devem ser os criminosos devidamente punidos.

A questão é muito séria. Se Ministros do Supremo têm sido irregularmente monitorados, não é difícil cogitar que o mesmo aconteça com outros agentes públicos cujos poderes decisórios e carga de responsabilidade não se comparam aos daqueles. Antes de troca de acusações, para deleite de alguns setores que têm interesse no acobertamento dos fatos, espera-se que os órgãos encarregados da investigação e repressão atuem de forma eficiente no combate a esse cancro.

Alguns Ministros do Supremo apontam o que chamam de ‘banda podre da Polícia Federal’ como responsável por essas interceptações ilícitas. Se isso for verdade, é necessário evitar qualquer descabida generalização. Da possível ‘banda podre’ deve ser distinguida a absoluta maioria dos componentes da corporação que diariamente trabalha para a consolidação dos valores democráticos afetados pelo crime. É com esta, aliás, que podemos e devemos contar para o esclarecimento dos fatos.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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