Desdobramentos do Julgamento



Alguns meios de comunicação têm qualificado o processamento de quarenta figurões pelo Supremo Tribunal Federal – STF de julgamento do século. Será que não se trata, em verdade, de bela chamada ao público leitor, ouvinte ou espectador?

Sem dúvida que o julgamento referido chama a atenção. Poucas vezes se viu tanta gente endinheirada ou com grande influência política sendo processada pela prática de ilícitos. No entanto é preciso ficar claro que seu resultado apenas definirá a necessidade ou não de processamento desse pessoal. Se crimes de fato foram cometidos e se conseqüentemente devem ser penalmente reprimidos são questões que deverão ser apreciadas em outro julgamento.

Imagina-se que, se tanto tempo decorreu para que o STF pudesse autorizar o processamento penal, é provável que outro considerável período, possivelmente maior que o da investigação, seja necessário ao seu regular andamento, ensejando, ao final, que a Corte decida pela responsabilização ou não dos acusados.

Há quem arrisque que, antes do final da década, o processo não termina. Tudo bem, então, que o julgamento para admiti-lo seja o da década. Mas não o do século. Reservemos esta designação para o que finalizará o processo, não para aquele que o iniciará.

Assim o é não por que o Supremo o quer, mas por que é assim que o sistema processual penal determina. O fato de existir uma novela para abertura do processo e outra, possivelmente maior e com enredo mais complexo, para seu desfecho faz parte da irracionalidade de uma legislação ainda estruturada sobre métodos do Estado Novo.

Certamente a Constituição Federal e o advento de novas leis contribuíram para o sensível aprimoramento dessa legislação. Mas todas essas medidas ainda são insuficientes. É preciso rever conceitos e institutos consagrados, cuja única certeza científica que traduzem é a da impunidade.

Com um pé no passado e outro no presente, esqueceu a legislação processual penal de focar o futuro. É por isso que se apresenta inábil e imprópria para adequado julgamento de processos difíceis, como aqueles que visam reprimir delitos de lavagem de dinheiro ou praticados contra o sistema financeiro nacional. E a par das dificuldades decorrentes de sua precária estruturação, constitui-se num sistema apto a selecionar a que crimes e a quais criminosos apresentará uma resposta eficaz.

Exemplo típico dessa deformidade é o chamado foro privilegiado, quando algumas autoridades públicas, pela relevância do cargo que ocupam, devem se submeter a julgamento por instâncias distintas daquelas freqüentadas pelo cidadão comum. É certo que tem suas motivações técnicas, assim como muitos são os argumentos jurídicos com o escopo de demonstrar o equívoco de sua adoção. E qualquer ponderação acerca de sua necessidade não pode desconsiderá-los.

Mas também deve ser observado o aspecto prático ou logístico da questão. Pelos seus importantes desdobramentos no âmbito do princípio da igualdade, o foro privilegiado não deve ser reputado assunto específico de juristas abstratos e esquecidos da realidade que paradoxalmente integram, muito menos somente daqueles que por ele acabam beneficiados.

Nessa linha de raciocínio parece que o Supremo não detém algumas das condições necessárias para julgar questões como a que lhe ora é submetida. É indiscutível que qualquer Ministro detém conhecimento jurídico suficiente ao seu enfrentamento. Portanto não é essa a condição ausente. Mas sendo o papel do Supremo debruçar-se sobre questões eminentemente jurídicas, e não especificamente fáticas, estaria apto ao julgamento de processos onde estas são as que prevalecem no campo da discussão?

E no que concerne à relevância da questão submetida à análise judicial, têm estes casos os mesmos efeitos de, por exemplo, uma decisão de inconstitucionalidade, quando a Corte define se uma lei pode ou não ser aplicada? Nesse viés, o foro privilegiado é importante para o regular encaminhamento dos interesses nacionais ou para a consagração de interesses individuais daqueles que transitoriamente – pelo menos assim deveria ser – transitam pelo poder?

Se esta discussão entrar na pauta do debate público nacional, há que se ceder àquele vaticínio inicial de alguns jornalistas. Estaremos sim diante do julgamento do século se a sociedade definitivamente reconhecer a necessidade de eliminar esse desvio antidemocrático chamado foro privilegiado.

É curioso observar, pois, que a importância do julgamento é simbólica e está vinculada à oportunidade de se repensar o assunto. Acaso algum dos processados seja condenado, nada deveria impedir que o fosse pelos juízos ordinários. Não merecem especial ou peculiar atenção do STF.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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