O Segredo dos Inocentes



É muito conveniente a certos oportunistas referir que o Poder Judiciário é antidemocrático, pela simples razão de seus representantes não serem eleitos pelo povo. Há pouco tempo, aliás, foi arquivada, no Congresso Nacional, proposta de emenda constitucional com o objetivo de modificar o ingresso na magistratura, substituindo o atual modelo de concurso público de provas e títulos por eleição.

Como se a democracia fosse medida apenas pela escolha direta pela sociedade. É óbvio que alguém comprometido com o estado democrático de direito não advogará a tese de que as eleições são dispensáveis. Muito pelo contrário, é o mecanismo por excelência do realizar democrático. Mas não é o único. A par das eleições, deve dispor o cidadão de outros instrumentos para deliberação dos interesses públicos.

É importante destacar essa particularidade a respeito das eleições, porque elas, paradoxalmente, têm sido utilizadas para inviabilizar o projeto que visam inicialmente sustentar. Em nome da democracia é ela própria que tem sido diariamente desconsiderada. Há aqueles entendendo que, uma vez eleitos, possuem carta branca para fazer o que bem entendem, afinal, suas atuações são legitimadas pela eleição.

Atualmente parece não haver melhor exemplo dessa ardilosa manipulação retórica do que o voto secreto para definição de assuntos públicos extremamente relevantes.

Sua inverossímil explicação é repetida sem o menor embaraço por seus árduos defensores. Não deve o congressista se sentir pressionado quando de sua soberana opção, preservando-se, assim, sua independência. Resta indagar quem é soberano, o eleito ou aqueles que o elegeram? O eleito deve resguardar interesses próprios ou os interesses daqueles que lhe elegeram? Admitindo como correto que soberanos são os eleitores e é no interesse destes que o eleito deve trabalhar, parece lógico concluir que não existe independência. Consequentemente, é óbvio que o voto secreto serve apenas para que o congressista, sem ruborizar as faces, tome posições que não correspondam aos interesses que deveria resguardar.

Mais do que escarnecer os eleitores, o voto secreto é ato de covardia. Congressista é ser humano sujeito a erros e acertos. Nada impede que, interpretando equivocadamente alguma demanda, opte por decisão que ao final se revele desfavorável aos seus eleitores. Que arque, então, com a responsabilidade própria da sua incumbência constitucional. O voto secreto subverte esta lógica. Autoriza que o congressista de má-fé escolha solução manifestamente contrária aos interesses de seus eleitores e ainda permite que desdenhe destes afirmando ter feito escolha diferente.

É fácil traduzir essas colocações teóricas para o plano prático. Ajeita-se no Senado Federal uma forma de, por meio do voto secreto, decidir o destino do seu Presidente. Nenhuma novidade. Tudo é amplamente noticiado pelos meios de comunicação sem o menor pudor. Mas, os eleitores não devem saber qual o posicionamento dos seus eleitos a respeito do assunto? Ou devem admitir o faz-de-conta que permite que questões públicas sejam encaradas como meras questões corporativas?

E o que tem a ver o Poder Judiciário com isso? É que no Judiciário os julgamentos são públicos e fundamentados. Não há segredo, exceto nas hipóteses em que se mostre necessário para proteger legítimos interesses, como nas questões de cunho familiar. Todas as decisões que nos são afeitas estão lá, à disposição para serem lidas, confrontadas e criticadas. Certos ou errados, são conhecidos os fundamentos que conduziram aos resultados.

Semana passada encerrou o julgamento para abertura de processo contra dezenas de pessoas identificadas como ‘mensaleiros’. Certa ou errada a decisão é conhecida. Mais que isso, são conhecidos todos os argumentos de todos aqueles que decidiram. Portanto, é possível discordar veementemente de qualquer conclusão. Mas essa possibilidade decorre pura e simplesmente do fato de todos os votos serem publicamente conhecidos. Mas e se fossem secretos?

Atualmente é pressuposto do realizar democrático não apenas o exercício periódico do voto, mas também a participação ativa da sociedade mediante o conhecimento das questões e deliberações de interesse público. É necessário conhecer para criticar. E é necessário espírito crítico para construir e evoluir.

Sob este aspecto o Poder Judiciário é antidemocrático? Não está disponível à procura por qualquer cidadão? Suas decisões não podem ser conhecidas e, portanto, criticadas? E estas críticas não podem servir à elaboração de decisões mais adequadas à realidade social, cultural e política?

Decerto que os argumentos são insuficientes para obstaculizar a pretensão de eleições no Judiciário. Mas antes, não seria melhor terminar com o voto secreto? É preciso muita cautela! Não é de duvidar que haja interessados em juízes eleitos e sentenças secretas.



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