Jeitinho para tudo



Na semana em que se decide o futuro político do Presidente do Senado Federal – pelo menos por alguns anos, afinal, seu conterrâneo Fernando Collor já voltou –, seria bom refletirmos sobre a ética, mais especificamente a ausência de, não apenas no âmbito político, mas especialmente no que diz respeito às nossas próprias relações cotidianas.

Lembro-me de um professor mencionar que criticar a classe política é o mesmo que cuspir para cima. Ou seja, lá estão os mesmos de sempre para fazerem as mesmíssimas coisas por força de nossas próprias escolhas. Obviamente que o vaticínio em questão não é inteiramente correto. Há uma multiplicidade de fatores que conduziram ao lamentável cenário que ora vivenciamos. Porém, sem dúvida, não podemos, nós eleitores, deixar de assumir nossa culpa no cartório. Duas notícias aparentemente sem qualquer relação parecem confirmar a tese de que a classe política, de alguma forma, reflete a sociedade.

A primeira delas é o propagado acréscimo da arrecadação, com o ingresso de aproximadamente um bilhão de reais nos cofres federais, ante a singela exigência de apresentação do CPF de dependentes, com mais de vinte e um anos, de contribuintes do imposto de renda. Segundo estimativas da Receita Federal, simplesmente cinco milhões de pessoas nessa situação desapareceram.

Nas declarações anteriores a 2007, para obter dedução no imposto a ser pago, ou restituição do que havia sido pago, bastava que o contribuinte afirmasse a existência do dependente. Por conta desta facilidade, muita gente se aproveitou do cochilo do Leão abocanhando uma parte do dinheiro destinado à Viúva. Deixando barato que a ficção constitui crime, fato é que não foram poucos os que abocanharam um dinheirinho indevido. Alguém pode dizer que a brincadeira dá em torno de duzentos ou trezentos reais por contribuinte. No plano ético, contudo, daí para doze mil reais – que o amigo paga de pensão alimentícia por desinteressado companheirismo angelical – a diferença não é tão grande.

Cabe indagar, esse projeto de sonegador, acaso diante do pouco blindado penico onde é guardado o dinheiro republicano, não se constituiria num potencial corrupto que hoje ele tanto critica? A execração é decorrente da genuína aversão a condutas criminosas ou é por pura inveja de não ter as mesmas oportunidades?

Enquanto isso, sonegadores e corruptos, potentes ou em potencial, bradam pelo enrijecimento penal. Claro! Desde que limitado a atingir o chinelo que furta um pacote de bolachas.

A segunda notícia, não menos triste ou trágica, mas bem mais sanguinária, está estampada na capa d’O Sul de ontem: “Feriadão já tem 29 mortos no Estado”. Não resta outra coisa senão torcer, rezar, meditar ou coisa que o valha para que este número não tenha aumentado. O que é difícil, visto que ainda há o retorno para contabilizar novos acidentes.

Muitas podem ser as causas dos infortúnios no trânsito. Mas sem dúvida dentre todas elas a lamentável campeã é a imprudência. Tomados por espírito de emulação, alguns motoristas transformam-se, de uma hora para outra, em ases do volante, capazes de superar qualquer dificuldade imposta pela alta velocidade dos seus veículos ou por manobras temerárias ou homicidas.

Neste caso, o pretenso homicida pisa mais fundo no desrespeito ao próximo. É mais ostensivo com relação ao sangue de terceiros. Ele não se contenta em sugar aos pouquinhos como faz o projeto de sonegador. Equiparado a este no desrespeito aos outros, será que, seguindo nessa estrada, o pretenso homicida não poderia se travestir de Dick Vigarista, se tivesse ocasião para tanto?

É possível ouvir ao longe o protesto do projeto de sonegador. Esperemos aí! Não pode ser comparado ao pretenso homicida. Ele não mata! Só embolsa uma quantiazinha suficiente para um bom churrasco regado a muita cerveja com os amigos. É melhor ele saborear a picanha comprada em promoção do que permitir que alguém obtenha vantagem com o superfaturamento do preço do boi em Alagoas. O Brasil não funciona mesmo!

Mas não funciona exatamente por que o Brasil? Por que desde sua descoberta nasceu para não funcionar? Ou por que queremos que não funcione? Ou é indiferente que funcione? E não há forma de fazê-lo funcionar?

Se quisermos responder sim à ultima indagação, será necessário adotar inúmeras medidas em conjunto. De qualquer forma, uma delas está aí, à disposição. É barata e exige um pouco mais de reflexão acerca de nossas atitudes. Chama-se respeito ao próximo.

A falta dele é que faz com que o Brasil não funcione e continue a não funcionar. Faz com que achemos normais uma sonegaçãozinha aqui e outra ali. Faz com que, a cada final de semana ou feriado, leiamos manchetes a respeito de outras dezenas de mortos no trânsito. Até quando?

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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