A forma e o conteúdo



Propalado descumprimento de ordem judicial emanada do Tribunal de Justiça reflete a ausência de lógica que impera no sistema processual brasileiro. Segundo o noticiário, certa empresa concessionária não liberou a passagem gratuita de determinados veículos sob o argumento de não ter sido comunicada oficialmente da decisão. Entretanto, o relator do processo informou que os advogados da mesma encontravam-se presentes no julgamento.

Baseado apenas nas informações da imprensa, é incabível a pretensão de afirmar quem está com a razão. Nada impede, no entanto, conjeturar sobre a hipótese de os fatos assim terem ocorrido.

A finalidade óbvia do processo é alcançar soluções aos conflitos, em conformidade ao direito, da forma mais rápida possível. Porém esse objetivo não pode ser obtido de forma desorganizada, em prejuízo do próprio direito. Por isso, alguns princípios basilares devem ser observados, como por exemplo, o contraditório. Se não é facultado ao oponente manifestar-se sobre a pretensão do outro, é muito provável que a decisão seja arbitrária. Algumas formalidades legais, portanto, são indispensáveis exatamente para assegurar a aplicação desses princípios.

É preciso ter consciência de que o processo existe por uma necessidade instrumental. Não é um fim em si mesmo, mas caminho para alcançar um objetivo que lhe transcende. A forma deve observar sua vinculação e submissão ao direito material, prestando-se à satisfatória garantia deste. Caso contrário, por sua manifesta inocuidade, termina por mostrar-se dispensável. Ao exemplo para facilitar a compreensão.

As intimações têm por objetivo comunicar a prática de atos processuais, podendo ser uma decisão, o resultado de uma perícia ou uma manifestação da parte contrária. Não se descura que a legislação estabelece como a intimação deva ser realizada. Mas cabe indagar se, operacionalizada por outra forma, atingida a finalidade de comunicação do ato, ainda assim é necessária a forma prevista na lei?

Supondo que todas as intimações devam ser realizadas por oficial de justiça, acaso o interessado seja cientificado do ato por via eletrônica, correio ou qualquer outro instrumento, a finalidade de comunicação restará prejudicada?

Por algum motivo a legislação impõe certas formalidades. O mais evidente é a comprovação de que o interessado foi efetivamente comunicado do ato. Porém a comprovação desse conhecimento pode ser feita de modo diverso ao daquele estabelecido na legislação.

Aquele que, presente no julgamento, toma ciência do seu resultado, estará autorizado a invocar formalidade processual relacionada à intimação como prevista em lei? Qual é a finalidade da intimação neste caso, uma vez que já ciente a parte do resultado do julgamento? Prevendo a lei que mesmo nesta hipótese a parte deva ser intimada pessoalmente por oficial de justiça, pode a regra sobrepor-se à realidade fática apenas para exercício de dispensável, por inoperante, ficção?

Como visto, deve haver alguma justificativa para determinada formalidade. Contudo, faltando-lhe o fundamento, a simples referência à previsão legal é insuficiente para exigir o respectivo cumprimento. A ética, então, deve entrar em campo. Voltando à hipótese versada, cumpre indagar se a parte que, mesmo cientificada do ato, ainda assim exige intimação por oficial de justiça estará agindo eticamente.

Nessa situação há quem apele a velho argumento: direito não se confunde com ética ou moral. Decerto que não se confundem. Mas princípios éticos não podem orientar questões jurídicas? Quem responder negativamente não estará legitimando regimes jurídicos, como o nazista, que autorizaram carnificinas?

A visão que preconiza o direito despido de qualquer noção ética acaba por autenticar o voto secreto dos parlamentares. Se há autorização legal, está encerrada a discussão. O campo ético é privativo dos filósofos. Será mesmo?

Conta-se aos milhares apenas as leis ordinárias do país, a forma mais comum de manifestação legislativa. Acresça-se a esse espantoso número o não menos surpreendente de outras disposições normativas e concluir-se-á que falta de lei não é problema. Parodiando Mário de Andrade, pela boca de Macunaíma, muita lei e pouca ética, os males do Brasil são.

Dentre as fantásticas histórias do Barão de Münchhausen há aquela em que, para livrar-se de um atoleiro, puxou os próprios cabelos. Pois enquanto o direito permanecer apartado da ética, as inovações processuais correntemente apresentadas pouco contribuirão para solução dos problemas judiciais. Sem esse precioso auxílio, continuaremos puxando os cabelos na tentativa de sair desse emaranhado.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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