Prestando contas ao Divino



É para breve o desfecho da questão de o mandato eletivo pertencer ao candidato eleito ou ao partido político pelo qual se elegeu. Alguns especialistas têm apontado que a decisão do Supremo Tribunal Federal deverá salvaguardar interesses partidários. De qualquer forma, num ou noutro sentido, a deliberação causará polêmica e muita discussão.

Frente à relevância da matéria, é natural que a imprensa sobre ela volte sua atenção. Inúmeras e importantes opiniões, dos mais variados setores, são coletadas ensejando ao público formular suas convicções. Mas também há algumas preciosidades que, embora pareçam superficialmente cômicas, prestam-se a profundas reflexões.

Ao trocar o PTC pelo PR (?), o deputado federal Clodovil Hernandes foi questionado sobre a possibilidade de perder o mandato, dependendo da decisão do Supremo Tribunal Federal. Pelo que foi possível acompanhar da resposta, obviamente editada, saiu-se com uma pérola, que posteriormente pode até ter sido corrigida, mas ainda assim não deixa de ser uma autêntica pérola, algo parecido como “devo o mandato a Deus, não ao partido”.

Deixando de fora a evidente irrepresentatividade das citadas agremiações partidárias, e a necessidade de fuxicar no metafísico para encontrar alguma ação política minimamente considerável do nobre deputado federal, fato é que foi conduzido ao cargo por força e obra de centenas de milhares de eleitores. Por mais forte que seja a crença do indivíduo, mesmo a ele custa acreditar que Deus tenha deixado de lado os inúmeros problemas da humanidade para voltar sua atenção ao insigne costureiro, coordenando ou manipulando dissimuladamente a vontade dos eleitores.

Mesmo ao mais fervoroso crédulo, portanto, parece evidente que o senhor Clodovil foi erigido à condição de deputado federal pela força das mãos de pessoas que provavelmente sempre estiveram distantes da possibilidade de adquirir suas ornamentadas vestimentas. Não por capricho divino! E ainda que zeloso dos mandamentos religiosos, o congressista deveria lembrar daquelas mãos calosas, engraxadas, descuidadas, cujos dedos apertaram as teclas que selaram outro pacto de esperança.

Em verdade, o respeitável deputado federal não lembra dessa gente por que acredita sinceramente que sua eleição foi uma manifestação do divino para abençoá-lo. Os eleitores são apenas detalhes, ou instrumentos da graça. Partindo dessa premissa, está autorizado a utilizar o mandato da maneira que melhor lhe aprouver. Deve contas a Deus. E somente a Ele.

Essa constatação não resulta considerar que o ilustre deputado federal inovou, como possivelmente fazia lançando suas modas. Pelo contrário. É comum observar, no Congresso Nacional, essa ausência de compromisso com os eleitores. O senhor Clodovil é apenas outro que ingressa no seleto grupo daqueles que utilizam cargos públicos para defesa de interesses particulares. Afinal o respeitável público é algo abstrato, inalcançável, mera ficção. E tudo sob os auspícios da legislação que eles mesmos elaboram. Acaso se insista em invocar as palavras ética e moral, escondidas nos dicionários empoeirados que alguns chatos ainda insistem em ler, não é de duvidar que daqui a pouco haverá lei expurgando esses vocábulos do vernáculo.

Para não deixar o senhor Clodovil sozinho como paradigma dessa realidade, basta invocar a figura do Presidente do Senado Federal. No pressuposto de que as denúncias contra ele articuladas são infundadas – e neste ponto cada qual acredita no que quiser, sob pena de condenar à morte Chapeuzinho Vermelho e o coelhinho da Páscoa – é quase consenso que deveria afastar-se da presidência da Casa. Sua insistência em permanecer no cargo escora-se no argumento insistentemente levantado de que quer resguardar a instituição. Balela! Que permaneça no Senado sem a visibilidade da presidência. Sua persistência apenas exacerba as críticas lançadas contra a Casa e atravanca os trabalhos que a Constituição Federal atribui ao órgão. Nada mais contrário aos interesses da instituição.

Mas não sejamos tão pessimistas. Essas deficiências ocorrem em qualquer lugar do mundo, em maior ou menor intensidade. O que parece ser uma particularidade brasileira é a observância de que consideramos essas situações como naturais, estando praticamente destruída nossa capacidade de reação e inconformidade, restritas a manifestarem-se em mesas de bar, escritórios profissionais ou diante da televisão ante a notícia de outro escândalo.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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