O Judiciário, o Direito e a Democracia (I)



Na semana que passou o Supremo Tribunal Federal proferiu importante decisão, cujos efeitos atingem tradicional concepção acerca da democracia. Igualmente o rígido conceito de separação de poderes foi afetado. E concordemos ou não com a posição adotada, é inegável que dela extraímos inúmeras lições.

Primeiro, o direito não é unívoco. Ou seja, não é tão fácil como se imagina prever as soluções jurisdicionais para determinadas controvérsias. Há um ditado popular apregoando que da cabeça de juiz e da fralda de bebê pode sair qualquer coisa. Expressão legítima da sabedoria popular. Não significa isso, porém, que o juiz decide como melhor lhe aprouver ou de acordo com os humores do dia, mas sim que o direito enseja diversas soluções, devendo optar por aquela que lhe pareça mais adequada.

Quem acompanhou o julgamento a respeito da fidelidade partidária observou que foram construídas basicamente duas interpretações; uma admitindo que os mandatos pertencem aos partidos políticos e outra preconizando exatamente o contrário, que os mandatos servem aos parlamentares, independentemente da filiação partidária. Mais. Para os que sustentaram a primeira solução, que se revelou majoritária, foi preciso definir a partir de que data a fidelidade deveria ser observada; se desde o início dos mandatos ou se desde resposta do Tribunal Superior Eleitoral à consulta pública. Foi vencedora a primeira.

No âmbito da discussão é possível afirmar qual posição é a correta? Se optarmos por alguma dessas soluções, significa que as demais estão absolutamente equivocadas e que, por essa razão, são insustentáveis? E sendo absoluta e inequivocamente incorretas, significa que os julgadores que as encamparam atuaram de má-fé ou colocando em relevo interesses particulares?

Aqueles que trabalham com direito têm ciência de que a resposta para qualquer dessas indagações é negativa. É inviável afirmar que uma ou outra posição é indiscutivelmente a correta. Como diria um antigo professor, direito não é matemática. A solução que o juiz estabelece para determinado conflito observa métodos e parâmetros completamente distintos de uma simples operação de soma.

Então todas as respostas jurídicas são relativas? Sim. Tal constatação, entretanto, não deve conduzir ao desespero. Não é que vivamos na mais completa desordem. Há espaço para a segurança jurídica, porém não mais baseada em dogmas pretensamente absolutos. O critério basilar utilizado pelo operador do direito é outro: o conceito de razoabilidade.

Por mais complicado que pareça – e de fato o é –, definir o que venha a ser razoável, por vezes existe algo próximo ao consenso no sentido de estabelecer o que seja irrazoável. Por mais repugnantes que se mostrem as atrocidades praticadas pelo regime nazista contra judeus, não podemos esquecer que boa parte delas constituíam medidas não apenas autorizadas mas exigidas pela legislação alemã de então. Quer dizer que, por ser lei, e somente por isso, merece observância acrítica, redundando na tragédia humana por todos conhecida? Ou devemos nos pautar por princípios outros que demonstrem ser completamente descabidas e injustificadas? As respostas parecem óbvias.

Certamente é difícil aproximar o exemplo nazista das questões julgadas recentemente pelo Supremo. A gravidade do primeiro é evidente. Não obstante, talvez com a reserva ditada pelo transcorrer do tempo possamos, no futuro, assegurar consensualmente que uma ou outra solução deveria se impor.

O direito elabora-se contínua e diariamente. É verdade que com avanços e retrocessos, os quais somente podem ser mais adequadamente avaliados com a lupa distantemente colocada pelo observar histórico. É por isso que hoje consideramos absurdas algumas atitudes concordes ou lenientes, por parte de pessoas e organizações supostamente insuspeitas, com as ações dos nazistas.

Ciente desta realidade, a Constituição Federal exige que todas as decisões judiciais sejam tornadas públicas. Se para aquele caso concreto, naquele momento, a decisão deve ser respeitada enquanto definição cabal do conflito, nada impede – pelo contrário, tudo recomenda – que prossiga a discussão a respeito da sua adequação, com a finalidade de orientar outras futuras deliberações.

O direito não se resume à lei. Com ela identifica-se apenas parcialmente. As implicações desta constatação são profundas e avassaladoras para conceitos conservadores e ultrapassados da democracia e da separação de poderes. Mas isso é assunto para outra semana.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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