Polícia para quê?



Escrevo estas linhas logo após ter assistido ao filme ‘Tropa de Elite’. No cinema, é bom ressaltar. O filme é polêmico porque propõe algumas reflexões.

Embora não exista justificativa para o crime, há explicações para sua prática. Desde Lombroso, que pretendia identificar criminosos pela compleição física, a criminologia tem estudado suas causas. E, depois de muita insistência, finalmente parece que foi acatada a idéia de que parte nada desprezível da criminalidade apresenta razões sociais. O tráfico de entorpecentes, especialmente o realizado nas favelas, comprova empiricamente a teoria. Adolescentes, crianças até, são induzidos a esse tipo de atividade pela ausência de perspectivas de realização pessoal. Essa realidade dispensa maiores comentários.

Nesse contexto parece existir, quando não uma espécie de beatificação, certo sentimento de tolerância. O tráfico ainda é encarado como mal a ser combatido, porém não é o traficante do morro carioca seu principal responsável. Mas é preciso encontrar algum culpado. Acabou sobrando para a polícia.

É notório que a polícia carioca enfrenta problemas de corrupção, boa parte dela vinculada ao tráfico. Mas ninguém em sã consciência afirmará que todos os policiais fluminenses são corruptos. Normalmente, contudo, a generalização é a regra, e da mesma sopa não mais se distingue o gosto da beterraba do sabor da cenoura. Há ainda alguns setores policiais que, embora não atingidos pela corrupção, apresentam histórico de constantes violações a direitos individuais. É o caso do capitão Nascimento, protagonista do filme. Não é corrupto, mas, constantemente assolado por seu ódio por corruptos e traficantes, pratica atos censuráveis, para dizer o mínimo, que balançam entre a tortura e a execução.

E o que faz o filme? Ele apenas humaniza Nascimento. Por isso é fascista, como qualificaram alguns precipitados dispostos a obter alguns segundos de notoriedade? O que transparece é que este pessoal caminha no embalo do maniqueísmo impensado – este sim fascista – que qualifica traficantes de bons (pelos problemas sociais) e policiais, invariavelmente, de maus. Ora, Nascimento não é nenhum robocop ou alienígena cujo único objetivo é trucidar. Ao cometer ilegalidades, comete-as assim como os traficantes. Enfim, a mensagem do filme é a seguinte: no meio dessa guerra, não há inocentes ou anjos, há seres humanos. Dos dois lados.

Somente quem desconhece a filmografia do diretor do filme, José Padilha, pode afirmar que ele realiza uma caricatura do policial como herói inconteste, apresentados, os traficantes, como reais bandidos na luta contra mocinhos. O documentário que realizou sobre o seqüestro do ônibus 147 no Rio de Janeiro, por um sobrevivente da chacina da Candelária, comprova a afirmação. Nele, Padilha humaniza Sandro, o assaltante-seqüestrador, enquanto em ‘Tropa de Elite’, o capitão Nascimento.

Também Padilha não é nenhum acéfalo disposto a reverenciar a eficácia da tortura ou de execuções sumárias. É fato que Nascimento, sob uma perspectiva cínica, revê criticamente seus atos. Vai ver fosse mais conveniente para alguns que mostrasse Nascimento arrependido e ingressando em alguma seita religiosa para expiar seus pecados.

É óbvio que as torturas e execuções sumárias são injustificáveis. Mas não encontram explicação? E não estariam nesta explicação os remédios para cessar os abusos. O fato de o traficante queimar viva uma vitima pode ser explicado, mas a morte encomendada pelo policial não? Se problemas sociais explicam o tráfico nos morros cariocas, estas mesmas questões não poderiam explicar também a virulência da polícia?

Embora pareça óbvio, sempre é bom lembrar que policiais não são abastados. Muitos ingressam na polícia por falta de outras opções, recebendo salários evidentemente desproporcionais ao risco ao qual se expõem. O sujeito sai de casa para trabalhar e não sabe se volta, ganha pouco e é mal preparado pela instituição; esperamos o que deste conjunto?

Além de humanizar o capitão Nascimento, o filme mostra que ele é resultado de um processo que inicia com a compra de drogas por quem mora bem longe da favela. Alguns críticos afirmaram que mostrar consumidores endinheirados como responsáveis pelo tráfico é reiterar uma obviedade. Mas deixa de ser mentira? Existe oferta porque há procura, ou não? Está certo que pessoas são levadas a consumir craque, cocaína e maconha por razões diversas, que não se resumem ao mero deleite. Esta constatação, todavia, é uma explicação, não uma justificativa.

É preciso lutar com todas as forças para extirpar abusos praticados por policiais, terminar com a tortura e execuções sumárias. Mas para isso não basta apontar o dedo para o policial e considerá-lo o único responsável por essa situação. “Tropa de Elite” é um soco na boca do estômago de quem, recostado confortavelmente em sua poltrona em ambiente refrigerado, pensa que a realidade se resume a apontar culpados por modismo. Talvez por isso alguns tenham regurgitado tanta besteira a respeito do filme.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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