Pára tudo que roubaram meu rolex



Assaltado por um motoqueiro e seu carona, o apresentador televisivo Luciano Huck, desfiou um rosário sobre os problemas da segurança pública em São Paulo. Como se tudo fosse novidade.

Luciano tenta se apresentar como um cara bacana que prefere não usar carro blindado, posto que deve lhe ser assegurado o direito de andar pelas ruas em segurança. Inclusive ostentando o Rolex que lhe foi roubado, presente de aniversário de sua amada esposa, também apresentadora de televisão. É preciso evitar que 'uma multidão bastante triste' lamente qualquer infortúnio.

Tem razão Luciano em suas colocações. Não deveríamos precisar andar de carro blindado (pelo menos aqueles que têm condições para tanto) e deveríamos poder sair às ruas tranqüilamente com um Rolex no pulso (pelo menos aqueles que têm condições de comprar um).

A questão é que Luciano tem trabalhado demais. E como trabalha na televisão, onde, exceto nos noticiários espetaculosos, vigora o mundo da fantasia, talvez não tenha tido contato com o mundo real. É possível que somente tenha provado da violência pelos referidos noticiários. Bem de longe, é claro. E enquanto estava assim, tudo bem! Azar é de quem foi vitimado.

Quando aconteceu com ele, daí o mundo da harmonia fictícia desmoronou. A virtual falência da segurança pública, assunto que antes não interessava, entrou na pauta. Cadê a polícia, questiona ele?

Pois é Luciano, bem vindo ao mundo real! Nele não há discriminação. O assaltante não quer saber se o relógio é de rico ou de pobre. A vida humana, neste caso, é óbvio, valerá menos que o relógio. Que coisa mais material, não? Mas será que Luciano pensou que contribui de alguma forma para isso? Será que ele se dá conta de que no intervalo do seu nada instrutivo programa, quando conclamados os sagrados patrocinadores, a preferência é do ter em detrimento do ser? Será que se ateve ao fato de que seu Rolex poderia alimentar ou vestir tanta gente?

Está certo, Luciano trabalhou para enriquecer. Esta é a lógica do capitalismo. Mas não deveria fazer de conta que o contexto em que isso aconteceu é idêntico para todo mundo. Para muita criança que não nasceu em berço esplêndido pedir dinheiro na rua é exigência para comer. Sobra pouco tempo para estudar e aprender as técnicas de transmissão dos recadinhos e valores ilusórios próprios do seu programa. Será que Luciano não sabe que tem gente que trabalha de sol a sol e que, ao final da vida, mesmo economizando ainda assim não terá dinheiro para adquirir um Rolex, quando muito para um Casio vindo do Paraguai?

Luciano declara que paga imposto e que por isso merece proteção. Se ele pretendia que isso fosse um critério diferenciador para merecer segurança pública, está errado. Pois é, Luciano, neste país todo o mundo paga imposto. Tanto o pessoal do andar de cima quanto o do andar de baixo, inclusive o do porão. Sobre o feijão e o arroz - quando há - que alimentam o pobre incide imposto. E é claro que ele não é pago pelo revendedor, mas pelo consumidor. Se não paga imposto de renda, é porque renda suficiente não tem. Ou quem sabe deve abrir mão do arroz ou do feijão para ser merecedor de segurança?

Um dos brados de Luciano é: "cadê o Capitão Nascimento?". O que quer dizer com isso? Quer seu Rolex de volta e que a polícia dê conta dos marginais que não pagam imposto? Sim, à violência do bandido responde-se com a violência do Capitão Nascimento, e eu não tenho mais nada a ver com isso! Estão terminando os comerciais e preciso voltar para 'o ar'.

Luciano transmite exatamente aquilo que as elites pensam a respeito de como o país deve ser conduzido. Pagam impostos e querem permanecer imunes à violência quotidiana. Mas não precisa combater suas origens, basta que ela seja varrida para debaixo do tapete. Noutros termos, violência é coisa da escória, e é somente no território da escória que deve permanecer. Retomando o cenário do Capitão Nascimento, enquanto a violência decorrente do tráfico permaneceu nas favelas estava tudo numa boa, porém, quando desceu os morros e chegou no asfalto o bicho pegou. Então o remédio é singelo: porrada nessa galera! Que voltem para os seus guetos e me permitam andar feliz com meu Rolex!

Por trás desse discurso rancoroso se oculta a mentalidade corrente de que concentração de renda é problema alheio, e não pressuposto da extrema injustiça social que termina por apresentar, entre outros malefícios, a violência como resposta.

Ao invés de perder tempo escrevendo jargões elitistas, Luciano Huck deveria se candidatar a algum cargo legislativo. Poderia propor, assim como tantos outros que partilham dos seus valores, a pena de morte. Quiçá também a legitimação da tortura policial. Cabe sugerir seu bordão de campanha: "Rolex aos bem apessoados e porrada na escória". Seria eleito apenas com os votos das socialites.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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