O Judiciário, o Direito e a Democracia (II)



Afirmei noutra oportunidade que o direito não se resume à lei. Isso significa que algumas respostas de conteúdo jurídico poderão encontrar fundamentos diversos daqueles explicitados pela lei. Isso quando não é a própria lei que apresenta várias soluções para um mesmo caso.

Mesmo que fosse possível elaborá-la de maneira a proporcionar apenas uma solução, ainda assim não daria para afirmar que todo trabalho jurídico está baseado em alguma lei. E isso é comum acontecer. Há fatos ou conflitos para os quais as leis não previram nenhuma solução. Essas omissões, deliberadas ou não, são conhecidas por lacunas.

Examinemos a situação das omissões indesejadas. No mais das vezes não podemos imputar alguma culpa ao legislador pelo fato de não ter estatuído a solução para determinado caso. São inegáveis, por exemplo, os avanços tecnológicos alcançados pelas mais variadas ciências. Não seria adequado, portanto, exigir que o legislador da década de sessenta pudesse prever que, atualmente, trabalhamos com computadores em casa, quando, naquela época passada, no máximo se dispunha de uma máquina de escrever. Certamente que as questões jurídicas relacionadas à informática estariam relegadas a um limbo legislativo se os operadores do direito não dispusessem de outros instrumentos para solucionar os conflitos relacionados a essa temática. Seria possível ao legislador do Código Penal, que ainda sobrevive com dispositivos dos anos quarenta, prever situações relacionadas à divulgação da pedofilia pela internet?

E quanto às omissões desejadas? Recentemente um periódico paulista publicou uma reportagem a respeito das medidas adotadas pela chamada ‘bancada ruralista’ do Congresso com a finalidade de evitar rigorosa disciplina no tratamento do trabalho escravo. Como representam os interesses de proprietários rurais que ainda se beneficiam do trabalho escravo, quanto mais atrasarem o processo legislativo, melhor. Isso significa que o operador do direito encontra-se de mãos atadas, devendo condescender com essa prática de exploração?

Não podemos esquecer, também, do constante câmbio dos valores morais. O Código Civil atual não dispõe expressamente sobre a possibilidade de adoção por casal de homossexuais. O fato de o Estatuto da Criança e do Adolescente autorizar a adoção por pessoa solteira, importa considerar que alguém não casado, que mantém relação estável com pessoa do mesmo sexo, não poderá adotar? Ou está-se diante de lacuna.

A par do problema das omissões legislativas, surge outro, paradoxalmente resultante da tentativa de exatamente evitar as lacunas. Como os atos da vida, mesmo cingindo-se aqueles previsíveis, são praticamente inumeráveis, o legislador procura elaborar leis para resolução de todos eles, o que acaba resultando na edição de milhares delas, fenômeno este conhecido por inflação legislativa. E por se realizar, no mais das vezes, de forma assistemática e precipitada, não raro ocorrem situações em que as respostas para determinado fato são apresentadas por mais de uma lei. São as chamadas antinomias. Diante delas, como deve ser resolvido o caso, já que há distintas soluções legais para o mesmo?

O exemplo das antinomias é parecido com aquele da diversidade de interpretações. São várias as possibilidades para resolver o caso. A diferença é que na situação das primeiras, mais de uma lei apresenta respostas divergentes, enquanto no segundo, uma mesma lei também apresenta respostas diferenciadas. De qualquer forma, há lei ou leis sobre o caso, só não se dispõe de resposta única para resolvê-lo.

Para quem não está acostumado com o ambiente jurídico acadêmico ou profissional, essas colocações podem parecer bastante complicadas. Mas para o estudante ou operador do direito são situações encontráveis no dia-a-dia. Ainda assim, mesmo para estes, ainda é dogma a noção, que na verdade não passa de mito, de que o juiz tem a função de solucionar conflitos com base somente na lei, como se a lei apresentasse sempre e inequivocamente a mesma resposta. Se essa construção fictícia ainda contamina aqueles que mantêm contato direto com o direito, imagine-se como não é encarada pelos leigos.

Nesse contexto, é preciso esclarecer à sociedade que a lei não resolve todos os problemas. Muito pelo contrário, são inúmeras as situações em que as próprias leis criam os problemas.

E frente à nítida insuficiência da lei para resolver todos os problemas, importa considerar que os juízes decidem de forma arbitrária? Certamente que não. Na medida em que a ciência implode o método chamado positivismo jurídico, que grosso modo preconiza a obediência irrestrita à lei, ao mesmo tempo constrói instrumentos aptos a evitar o arbítrio judicial.

Mas isso é conversa para outro momento.
Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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