Pitadas de Ética ou Igualdade



Mesclando provérbios populares, há um verso numa canção de Jorge Ben Jor que diz o seguinte: “prudência e dinheiro no bolso, canja da galhinha não faz mal a ninguém”. Já que de dinheiro todo mundo precisa, uns mais outros menos, e que prudência é um atributo recomendável a quem quer que seja, sobra a canja. Como há os que não a apreciam, poderíamos substituí-la por ética ou igualdade.

Sob o aspecto musical o resultado da troca seria um lixo, mas no plano jurídico, especialmente no interior das fronteiras delineadas a partir de Cabral, professando por um pouco mais de ética nas relações, talvez fosse possível evitar alguns absurdos que, estarrecidos, cotidianamente acompanhamos.

O recente caso de um congressista que renunciou ao mandato de deputado federal, escapando de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal pode servir de exemplo ao afirmado. Por alguns anos o foro privilegiado serviu aos seus propósitos. É consabido que, no Supremo, as instruções criminais, que podem ser traduzidas como a colheita de provas e argumentos a favor ou contra a condenação do réu, normalmente são mais demoradas que nas demais instâncias. A razão é simples. Abarrotados de processos, os Ministros dispõem de pouco tempo para tal atividade.

Pois depois de realizada a instrução, apta a Corte para proferir seu julgamento, o congressista renuncia. Efeito disso: perdendo o foro privilegiado, altera-se a competência. Ou seja, depois de todo o trabalho realizado, manda-se o processo para outro magistrado. O que ganha o réu com isso? Tempo, amigo íntimo da prescrição, que nada mais é do que o término do prazo que dispõe o Estado para obter uma condenação que sirva de base para o cumprimento da pena. Havendo prescrição, o sujeito pode admitir o delito. Não adianta, por mais grave que seja o crime, permanece impune.

Isso não significa que devamos abolir o instituto da prescrição. Pelo contrário. Constitui garantia individual que opera em desfavor da inoperância estatal. Por outro lado, deve-se evitar que manobras processuais possam conduzir exatamente à impunidade. Neste caso não é a negligência do estado que conduz à prescrição, mas um censurável proceder do réu.

Proceder este, é preciso ser dito, com base em certa interpretação da lei. Manuseando adequadamente brechas da legislação, é incorreto afirmar que atua ilegalmente. No entanto como há juristas preconizando que o direito deve observar parâmetros éticos, parece razoável afirmar que a adoção de medidas protelatórias, ao fim e ao cabo, termina por violar o próprio direito.

As discussões que pautam definição, conteúdo, critérios e balizas da ética demonstram as extremas dificuldades em apresentar seus delineamentos básicos. Contudo, se é praticamente impossível obter consenso sobre o que é ética, por certo a sociedade avançou o suficiente para poder afirmar o que a ela é contrário.

Conforme o sítio Consultor Jurídico, em 17 de abril de 2002, o congressista solicitou que o Supremo recebesse a denúncia contra ele ofertada. Neste momento implicitamente afirmou algo como ‘tenho foro privilegiado’. Depois de realizada a instrução, em 20 de setembro de 2007, protocola incidente processual alegando que deve ser julgado pelo Tribunal do Júri. Se isso não é contrário à ética, é melhor banir o vocábulo dos dicionários, fazendo de conta que ele nunca existiu.

Mesmo supondo que de fato o termo exista apenas para constar ou, para deleite dos positivistas, que o direito em sua pureza metodológica não se comunica com a ética, cabe abordar a questão sob a ótica do princípio da igualdade. Para isso é preciso examinar o fato sob julgamento.

O caso é uma pérola. Indisposto com um adversário político o réu disparou sua arma de fogo contra o desafeto, acertando-lhe um tiro no rosto. Dias depois, junto aos familiares, todos chorando, assistimos a sua declaração de que está profundamente arrependido.

Considerando tratar-se de político conhecido e influente, cujo filho atualmente é governador da Paraíba, cargo que, aliás, ocupara, não deve causar surpresa que termine impune. Aí é que entra distinção verificável quase diariamente nos ambientes forenses e, via de conseqüência, penitenciários. Fosse o ‘Zé Mulambo' apareceria na televisão como o pior dos criminosos. Até poderia pretender contar com o benefício da prescrição, mas isso depois de um longo período em cana.

Afirma-se que não deve ter ética aqui, nem igualdade acolá. E segue o baile. Mais uma prova de que o sistema penal se volta em regra para os pobres. Para quem tem poder político ou econômico, não basta querer para ser punido, tem que se esforçar bastante. Imprudência com dinheiro no bolso, e muita canja de galinha para a ralé. Olha que dá música!

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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