Areia não é invisível



O antropólogo Luis Eduardo Soares chama os garotos que pedem dinheiro nas esquinas, moram nas ruas ou inalam entorpecentes de meninos invisíveis.

Eles estão lá, podem ser vistos, mas, paradoxalmente, à sociedade apressada e ensimesmada, eles passam despercebidos. Chega então o momento em que eles não suportam mais a indiferença e gritam. Esse grito é desagradável porque não se limita ao som, normalmente está associado à violência. São gritos que mesclam ódio, amargura e tristeza, sentimentos resultantes da convicção de não se pertencer ao nada. Acima de tudo são gritos de desespero, clamando por atenção.

É preciso ampliar o alcance da colocação de Luis Eduardo Soares para que abranja não apenas os meninos segregados, mas também outros excluídos. Eles igualmente são invisíveis, e também estão aprendendo a gritar. Neste país socialmente desigual os exemplos são fartos. E não precisamos ir muito longe. Há muitos bem debaixo dos nossos narizes, embora não os farejemos. Na verdade, o cheiro é perceptível, mas fazemos de conta que não. Daí a invisibilidade.

É curioso que voltemos nossas atenções à comunidade da Vila Areia somente após os aplausos dirigidos a suposto traficante que matou um policial. Que absurdo! Como é que alguém preocupado em conviver numa sociedade pretensamente civilizada pode aplaudir tal atitude? Quais são os valores desse pessoal, que consentem com a morte de uma autoridade que existe para lhes garantir a segurança?

A primeira indagação talvez possa ser respondida pela formulação de outros questionamentos. Será equivocado cogitar que esses aplausos se constituem na má tradução do grito? A franca oposição entre a desmedida opulência e a mais completa miséria não seria capaz de causar essa esquizofrenia comunicativa? Os aplausos celebram o assassino ou transmitem o desespero causado pela invisibilidade?

E quanto à segunda pergunta, podemos exigir que esses invisíveis partilhem dos nossos valores? Suas crianças pedem dinheiro na rua ao invés de permanecerem na escola. Enquanto dirigimos nossos automóveis, eles conduzem carroças para reciclar o lixo que nós produzimos pelo consumo em excesso. Tomamos banho quente no inverno e frio no verão, com agasalhos apropriados para cada uma dessas estações, quando nem sempre eles dispõem de água ou de roupas. Ainda que a segurança pública não funcione a contento, não convivemos diuturnamente com a violência; não a da televisão, mas a que bate todo momento em sua porta. Reclamamos da insegurança e se não somos atendidos, pelo menos podemos reclamar, no tempo em que para eles há a lei do silêncio.

Pois ainda que exista essa extrema disparidade de valores, os invisíveis querem se integrar. Eles suplicam por isso. Não partilham dos nossos valores porque não podem, porque não lhes é autorizado. Mas bem que gostariam.

Os aplausos à morte do policial ou protestos quanto à prisão do assassino em verdade são os gritos daqueles que anseiam deixar de ser tratados com indiferença. São os gritos daqueles que querem integrar a sociedade, partilhar dos nossos valores. São gritos de desespero. Não há porque se iludir. O tráfico de drogas é pernicioso não somente ao usuário. Os invisíveis se submetem às suas determinações ou aos seus esporádicos auxílios não de forma deliberada, mas porque inexiste qualquer outra saída. Ou são simpáticos ao movimento do tráfico ou saem da comunidade. Não há outra escolha. E se optarem pela segunda, para onde irão? E já que a primeira prepondera, o instinto de preservação fala mais alto, se não há dinheiro para comida ou medicamento, o que resta é pedir auxílio ao tráfico. Não precisaríamos da imaginação artística de Dante para melhor descrição do inferno. É por isso que gritam.

Numa ponta da corda estão os invisíveis, na outra, os policiais. Possivelmente ainda contaminada pelos excessos praticados sob a égide da última ditadura, a opinião pública, sem refletir melhor sobre o assunto, têm atribuído cegamente às polícias a origem pelas respostas violentas das comunidades carentes. Manifestações como a da Vila Areia resultariam da repressão policial. Solução rápida e prática para quem pretende se livrar de qualquer responsabilidade no episódio.

Pois os policiais são seres humanos, no mais das vezes bem intencionados, que foram jogados nesse triste palco de segregação. A operação é singela. Havendo excluídos, como é mais difícil incluí-los, basta que se mantenha a exclusão, mantendo a paz dos incluídos. Se algo der errado, basta abrir um procedimento administrativo contra o policial mal armado e mal remunerado. Afinal se a corda rebenta, sempre tem um lado mais fraco em que colocar a culpa.

Não devemos ser ingênuos a ponto de acreditar que não existam interessados na manutenção da exploração do tráfico de um lado e policiais corruptos de outro. São, porém, exceções que confirmam a regra.

O grito dos invisíveis da Vila Areia deve ser tratado como problema social, não policial. Pode estar próximo o dia em que a panela não mais agüentará a pressão. Depois, não haverá policiais suficientes para resolver. De qualquer forma não é preciso aguardar outros sinais da explosão. Iniciativas visando diminuir a invisibilidade devem ser adotadas o quanto antes. Não deixemos que outros Emersons morram em vão.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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