A ideologia dos juízes



Desde Aristóteles podemos compreender o vocábulo ‘retórica’ em duas acepções distintas. A primeira, mais conhecida, está relacionada à capacidade de deturpar a realidade mediante discursos falaciosos. A outra se vincula à idéia de conhecimentos que são construídos no campo da argumentação, prescindindo do dedutivismo científico ou cartesiano.

Tentando traduzir isso para uma linguagem mais acessível, retórica compreende não apenas falastrões que, pela boa lábia, podem convencer as pessoas de algo absolutamente incabível, como também, e em sentido contrário, argumentos verossímeis – a respeito, por exemplo, de nossas opções morais – para construção de consensos.

Não é raro aparecer algum discurso afirmando que determinada decisão judicial é ideológica ou política. Será preciso apreciar, então, o contexto em que ele foi proferido, pois pode significar tanto uma falácia quanto um argumento razoável.

Comecemos pelo segundo sentido. É óbvio que os juízes têm posições políticas. Retomando Aristóteles, defendia o filósofo grego que todo homem é um ente essencialmente político. Partindo do pressuposto de que os juízes são seres humanos e não beterrabas, e que precisam tomar posições ao longo da vida, sejam profissionais ou pessoais, tais decisões são, necessariamente, políticas.

Toda vez que alguém, no âmbito de suas relações com terceiros, escolhe algumas das opções disponíveis sobre determinado assunto, está fazendo política. Faz política aquele que opta por certo candidato ao cargo de governador, como também o sócio que vota em um dos aspirantes a presidir determinada agremiação. Igualmente faz política o magistrado que, dentre as diversas soluções propostas, opta por aquela que lhe pareça mais acertada para resolver o caso concreto.

Obviamente que o eleitor, o associado e o magistrado, quando fazem suas opções, estão influenciados por distintos valores e critérios. Isso faz parte do ser humano. Não há como apartá-lo dessa realidade. Quando o eleitor vota no candidato que promete saúde pública a todos, quando o associado assente que sua agremiação doe valores a hospitais públicos e quando o magistrado decide a favor do paciente que exige atendimento público, todos estão fazendo uma opção; todos estão impregnados ideologicamente da idéia de que o estado deve assegurar a saúde do cidadão.

É fato que a Constituição Federal assegura o direito à saúde. Mas ela não define qual a extensão desse direito. E se incumbe ao juiz interpretar essa norma constitucional para emprestar-lhe eficácia decerto essa interpretação estará calcada naqueles valores que lhe são íntimos. Poderia, por conseguinte, entender que o atendimento prestado pelo Sistema Único de Saúde – SUS cumpre com esse direito. Ou pode entender que o SUS é insuficiente e que o estado precisa suprir essa deficiência. Num ou noutro sentido, fará uma opção política e essa opção espelhará sua ideologia.

Entretanto é preciso não confundir a política exercitada por todos os cidadãos daquela que se identifica como partidária. Essa confusão, infelizmente, é comum. Normalmente quando se afirma que alguém atuou politicamente, associa-se essa atuação à política partidária. Contudo, inequivocamente mais gravoso do que entender política de forma tão restrita é aproveitar-se maliciosamente dessa indistinção. Aqui entra a figura daquele retórico que distorce a realidade em defesa de seus interesses pessoais.

Não é incomum que alguém, insatisfeito com determinada decisão judicial, afirme que ela é política, exatamente no sentido restrito ou mesmo pejorativo. Há exemplos aos borbotões, como aquela que determinou o processamento dos mensaleiros. Alguns dos réus afirmaram que a decisão foi política. Por trás do discurso, o desejo de transmitir ao público que a Corte estava contra o governo por processar pessoas de suas relações.

Essa tentativa de distorção revela apenas incapacidade argumentativa ou de discussão. Além de ser nada democrática por não aceitar a opinião alheia. Ao invés de contribuírem para construção de possíveis consensos, esses sofistas modernos têm por objetivo arrancar aplausos da sua platéia estimulando a controvérsia e o desrespeito pelo próximo.

Uma dose de maniqueísmo alegórico pode explicar melhor a situação: é a má retórica falaciosa tentando implodir a auspiciosa atuação da boa retórica argumentativa.

Qualquer decisão judicial é passível de críticas. Todas elas decorrem de opções políticas, construídas com base em ideologias pessoais, devendo se submeter à constante dialética discursiva para formação de eventuais consensos. Mas não são partidárias, mesmo porque a Constituição Federal veda essa vinculação. Na hipótese de haver essa identificação, o magistrado deve ser afastado do caso.

Portanto prezado leitor, desconfie daqueles que dizem que certa decisão judicial é política. Podem querer afirmar que ela é partidária. E se for este realmente o caso, seja político, opte por não acreditar nos fanfarrões.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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