Inflação Legislativa



Depois de muito tempo padecendo dos malefícios da inflação na área econômica, o Brasil acompanha o fenômeno da inflação legislativa. É lei disciplinando tudo que é assunto. Isso não é nada bom.

Está em voga a tendência de pensar que a lei é a solução para todos os problemas. Há algo de difícil solução, não se cogita de outras alternativas. Elabora-se uma lei disciplinando a questão. Em alguns casos, há inclusive preguiça para criar outras formas de debelar o problema. Parte-se direto para resolver com a lei.

Bom exemplo dessa situação é a aprovação, no último dia 18, pela Assembléia Legislativa gaúcha, da proibição do uso do telefone celular em salas de aula. Certamente que a intenção do Legislativo é a melhor possível. Isso parece indiscutível, mesmo porque a iniciativa contou com apoio substancial de professores e diretores de escola. A preguiça, no caso, fica por conta da própria sociedade.

O cenário que ensejou tal aprovação é imaginável. Os professores, pelo menos os das escolas públicas, mal remunerados e desmotivados, ainda têm que enfrentar em sala de aula seus alunos usando os úteis, porém irritantes, aparelhos celulares. Nas escolas particulares a situação não é diferente. Deve ser até muito pior, presumindo-se o maior poder aquisitivo dos seus alunos. Identifica-se, aí, claramente, um problema a ser resolvido.

Quem costuma freqüentar lugares públicos, onde o silêncio é a exigência mínima, conhece bem o assunto. Quem que, concentrado no cinema, não se irritou com o barulho estridente de um celular tocando? Ou mesmo não acompanhou o portador, na maior cara de pau, atendê-lo, como se a assistência devesse prestar atenção no que ele fala e não no filme que passa na tela?

E no trânsito então? Não é incomum observar alguns motoristas, agraciados com o dom de dirigir seus veículos ao mesmo tempo em que falam ao celular. Há ainda os que fumam. Estes privilegiados; dirigir, fumar e falar ao celular! É o tempo do multiuso.

E já que se falou de fumar. Seria necessária a proibição de não fumar em certos estabelecimentos? Há explicações suficientes demonstrando que o fumo é pernicioso à saúde. Qualquer adulto, entretanto, mesmo informado a respeito, tem o direito de fazer com sua saúde o que bem entender. Se quiser fumar, que fume. Desde que, obviamente, não arraste a saúde dos outros consigo. O mínimo que se poderia exigir é o bom senso de não fumar próximo a pessoas que não suportam a fumaça do cigarro.

Como tudo é regulado na base da proibição, não existindo a placa correspondente, os outros que se virem. Se no restaurante alguns usuários não fumam, certamente é porque ali é vedado. Não fosse, azar é dos outros. Quem freqüenta estádio de futebol, onde inexiste a proibição, já deve ter levado inúmeras baforadas do educado fumante sentado à sua frente.

A proibição do uso dos celulares em sala de aula possivelmente resolverá o problema noticiado por professores e diretores de escolas, assim como ocorreu com o cigarro em alguns estabelecimentos. Mas não haveria outra solução, que resolvesse o problema em sua raiz?

E qual seria a raiz do problema? Ora, evidentemente que a educação. Ou melhor, a falta de. Portanto o que deveria ser trabalhado, tanto com fumantes quanto com alunos usuários de celulares, é que tanto o fumo quanto o uso do telefone prejudicam as atividades realizadas e as demais pessoas.

Claro que esse processo é difícil. Basta olhar para o trânsito, onde proibições andam a par de inúmeras campanhas de esclarecimento, e ainda assim continua morrendo gente aos borbotões. Mas as dificuldades não devem servir de desculpa para que se deixe de ministrar os remédios mais dolorosos, todavia mais eficazes.

Também é óbvio que, no caso dos professores, não incumbe a eles educar os alunos com relação aos celulares. Podem até auxiliar, mas essa é uma missão atribuída aos familiares. Estes precisam se desacostumar com a idéia de que casa é lugar puramente lúdico e que o local apropriado para educar é a escola ou alguma outra instituição. A casa é sim onde o indivíduo tem seu caráter forjado com os valores daqueles que convive. Deixar para a escola essa tarefa é muito arriscado. Depois somente haverá lugar para arrependimento.

Talvez esse excesso legislativo comprove que as instituições familiares não têm cumprido a contento seu papel. Ao fim e ao cabo, é tênue a linha que separa o indivíduo da ilicitude. O mal educado falador ao celular na sala de aula, desconhecendo os limites naturais da convivência em sociedade, pode ser o criminoso de amanhã.

Para o seu caso, então, a lei tomará feições bastante distintas. Se antes ela poderia ser simbolicamente representada por uma bela enfermeira pedindo silêncio, depois, será muito assustadora.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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