O som e a fúria



Imagine uma bateria de canhões posicionada no ponto mais alto da Estrada dos Moinhos – atual confluência da Avenida Independência com a Rua Ramiro Barcelos – a bombardear a cidade. Imagine os petardos sibilando na noite escura, em uma trajetória incerta de som e fúria, a espalhar pânico, pedras e sangue. Imagine o pesaroso amanhecer em que Porto Alegre, então pouco mais do que um arraial, fosse chamada a contabilizar a ruína de diversas casas e a morte de mulheres e crianças. Imaginou? Estamos de volta à noite terrível de 20 para 21 de junho de 1837.

Porto Alegre foi farrapa por breve período. Do entrevero na Ponte da Azenha, na véspera do Vinte de Setembro, até a fuga de Manuel Marques de Souza do barco-prisão Presiganga, em 15 de junho de 1836, não transcorreram nove meses. O plano revolucionário de dominar a capital, mal gestado, terminou em vexame: os legalistas se apossaram do quartel farroupilha, deram o toque de reunir em plena madrugada, e à medida que os revolucionários, desavisados, acorriam para atender o chamado da corneta iam sendo presos, um a um. Revelou-se, assim, que a “leal e valorosa” cidade de Porto Alegre não possuía um DNA rebelde.

Inconformados, os farroupilhas organizaram três sítios consecutivos, visando a retomada da cidade pela fome, pelas armas, ou pelas epidemias que grassavam entre os porto-alegrenses, confinados entre dejetos e alagadiços, protegidos pelas trincheiras que rasgavam a pequena península rochosa e por aquele imenso rio amarronzado que, naquela época pré-aterros, parecia ainda mais largo. De nada adiantaram os esforços farroupilhas. A cada carga de cavalaria, os moradores reforçavam baluartes e barricadas e resistiam. Salvas de artilharia eram respondidas com projéteis da mesma potência e calibre, trazidas em barcaças provenientes de Rio Grande. E de tempos em tempos piquetes saiam de trás de nossas linhas de defesa para incursões em território inimigo, capturando o gado e os cavalos tão necessários à resistência.

E como resistimos. Às bombas do general Netto, aos tiros, aos incêndios. Às varejeiras que sobrevoavam o lixo. Às mudanças de humor do Bento Manuel. À fome, às doenças. Ao tédio de um cerco que, em suas três fases, chegou à 1283 dias.

Por estas idas e vindas da História, os farrapos repelidos à época hoje vivem imorredouros nas tabuletas azuis que nomeiam nossas praças e ruas, no imaginário do porto-alegrense e nas telas policromáticas dos navegadores digitais. Neste mês de aniversário do bombardeamento da cidade, evento escassamente divulgado e conhecido, seria profícuo que o comitê organizador dos festejos do 20 de setembro discutisse a possibilidade de inclusão, já para a festa deste ano, de uma efetiva homenagem aos que combateram do lado de cá das trincheiras – integrando-os de forma definitiva à data que celebra os valores e tradições que, guerra após guerra, forjaram a alma gaúcha.

Marcel Citro de Azevedo é juiz federal



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