Um diário do ano da peste



O diário referido no título acima não se ocupa da crônica destes dias de desinformação e medo, apesar de se amoldar muito bem à epidemia de gripe H1N1 que temos enfrentado neste ano de 2009. Um diário do ano da peste, de Daniel Defoe, é o minucioso relato do efeito devastador da peste bubônica sobre a Londres de 1665, e uma homenagem as suas estimadas setenta mil vítimas. Não é, entretanto, o único texto célebre produzido sobre estas epidemias que, de tempos em tempos, põe a humanidade de joelhos: em seu Morte em Veneza, publicado em 1912, Thomas Mann impinge ao protagonista um amor atormentado em meio à cidade inundada pela peste asiática. Séculos antes, ao escrever o Decamerão, Giovanni Boccaccio transformou em personagem a própria peste negra, flagelo cujo potencial destrutivo moveu sete moças e três rapazes a isolaram-se em uma propriedade afastada, na Itália do século XIV. Para passar o tempo - e manter a mente afastada de conjecturas sobre a iminência da contaminação - os jovens contavam histórias uns aos outros. Dez histórias cada um, para ser mais exato, formando as cem narrativas que compõem o livro.

Esta idéia é instigante, e merece nossa reflexão: quais seriam as motivações literárias de um grupo às vésperas da morte, no Brasil do século XXI? Em outras palavras, se o vírus H1N1 sofresse uma mutação que lhe multiplicasse a letalidade e o potencial de transmissão, fazendo com que dez intelectuais buscassem refúgio em algum recôndito lugarejo de nossa serra, sobre o que escreveriam? O sentido da vida? A existência de Deus? Os atos secretos do Senado? (poderia até aparecer uma ordem para disponibilizar Tamiflu sem receita para apadrinhados.) Impossível prever, mas com certeza alguns dos cem escritos versariam sobre as mazelas e as perplexidades da Saúde Pública, esta expressão tão em voga nestes tempos difíceis.

Talvez um destes intelectuais recordasse que, pouco antes da mutação letal, houve gente que aproveitou a oportunidade para defender a idéia de mais um tributo, este sim direcionado integralmente para o custeio da saúde. Um imposto para diminuir as filas nas emergências. Para aquelas situações em que o cidadão, enfrentando suores e dores, e mandado febril para casa sob a justificativa de que o seu caso não seria grave o suficiente, pudesse ao menos receber um kit antiviral. Para impedir que nossos idosos nos deixem antes da hora – poderia bradar um político mais inflamado (mais populista) – e para evitar que as nossas gestantes venham a morrer sem conhecer o rosto dos bebês!

E talvez este intelectual de boa memória (que antes da mutação trabalhava em um posto de saúde onde faltavam anticoncepcionais para mães de cinco, seis, oito filhos; mas sobravam indutores de fertilidade) viesse a escrever neste seu texto, neste seu testemunho sobre um país doente, assolado por uma epidemia de acontecimentos abjetos, algo que todos nós sabemos – algo tão simples que até os vírus sabem: o problema primordial da saúde não é o déficit de receita, mas a qualidade da gestão.

Marcel Citro de Azevedo é juiz federal



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