Valmir, o herói sem nenhum vintém



Poucos devem ter ouvido falar de Valmir, o lavrador. Valmir Romário de Almeida, lavrador em um município do interior Espírito Santo. Valmir, um herói. Não um herói sem caráter, da obra que imortalizou Mário de Andrade, mas um herói anônimo, cujo superpoder se resume a enfrentar a triste realidade brasileira com muito pouco ou nenhum vintém.

Aos fatos. Valmir é suspeito de assassinar seu cunhado. Suspeita que recebeu roupagem de certeza porque assinou uma confissão. O crime aconteceu em 1998. Desde então, Valmir está preso. Todavia, o número de julgamentos pelos quais passou Valmir é o mesmo do número de notas de cem reais que ele possui no bolso: zero. Isso mesmo, nenhum. Valmir está preso há mais de dez anos sem ter sido julgado.

Ao jurídico. A materialidade está cabalmente comprovada. O cadáver, sepultamento, etc. Não há dúvidas. Mas quem matou a vítima? Os que não são versados em direito, apenas com base neste texto, poderão afirmar que foi Valmir, afinal ele confessou o crime. No entanto, qualquer acadêmico iniciado em processo penal sabe que a confissão, embora seja uma prova forte, está sujeita a ponderações. Um pai pode confessar um crime que não cometeu para livrar o filho da cadeia. Alguém pode confessar depois de intensa tortura. Outro pode confessar simplesmente por que não consegue compreender a dimensão e conseqüências do ato confessado. É possível que seja o caso de Valmir.

Segundo relatos familiares, Valmir sempre apresentou problemas psiquiátricos. Com base nessa informação, portanto, devemos desconfiar da confissão. Mas Valmir é herói, não vamos nos compadecer de seus problemas. Admitamos que ele praticou o homicídio. Justifica que permaneça preso por mais de dez anos? Avancemos no argumento. Pela prática do crime, Valmir deveria ser condenado. O seria, então, por trinta anos, máximo de pena que poderia cumprir segundo a legislação brasileira? Provavelmente, não. Isso significa que Valmir poderia ter alcançado benefícios penais muito antes dos dez anos de prisão, como a progressão do regime prisional.

Mas o mais relevante é que Valmir passou mais de dez anos aprisionado por que lhe foi sonegado uma das mais básicas garantias que qualquer cidadão que resida num país pretensamente civilizado deveria dispor, um julgamento imparcial.

Não fosse a atuação de um assessor jurídico que trabalhava no presídio em que se encontrava, Valmir possivelmente ainda lá se encontraria. Será que alguém ainda dúvida da importância e necessidade da atuação dos defensores públicos? Esses heróis anônimos dos milhões de heróis sem nenhum vintém que perambulam pelo país afora.

Liberto depois de onze anos preso sem julgamento, Valmir está desaparecido. Acalmem-se os acusadores de plantão! Valmir não fugiu. Ficou um mês com uma irmã que o considerou “mais maluco” do que quando ingressara na prisão. Depois foi para a casa de outro irmão em Vitória, o qual imediatamente o despachou de volta. Desde então se desconhece seu paradeiro. Quando encontrado, não se duvide que volte à cadeia, por descumprir condições da liberdade provisória, e fique por lá por mais onze anos. Sem julgamento.

Vivo fosse, talvez Mário de Andrade, pela voz de Macunaíma, pronunciasse que muita formiga e pouca justiça os males do Brasil são.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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