Um profundo amargor



Com as notícias dos últimos dias não há como deixar de sentir um amargor no espírito. A não ser pela crença em algum tipo de justiça muito distante das aproximações terrenas as quais estamos acostumados, é para se concluir que justiça é invenção dos homens. E, a propósito, muito mal utilizada.

Parece não haver outra explicação, pois enquanto assistimos à consolidação, a passos largos, da impunidade da farra brasiliense, sucedem-se inúmeras tragédias. O caso do Haiti é paradigmático. Não há nenhum homem responsável pela catástrofe. Mas há diversos homens responsáveis pelas suas proporções. Ou alguém acredita que o povo haitiano possui disposição atávica para o sofrimento? Foi uma sucessão de fatos históricos que determinou aquele cenário de pobreza extrema, ora agravado pelo terremoto. Primeiro a dominação colonial, ocupada apenas com a extração das riquezas naturais da ilha, fartando de divisas os bolsos dos exploradores comerciais. Depois o assentimento norte-americano com governos antidemocráticos, afinal os Docs – seja o Papa, seja o Baby – sempre lhes foram bastante convenientes para o controle geopolítico da região. Mesmo que para isso fosse necessário abdicar dos princípios que, paradoxalmente, inspiraram a invasão do Iraque.

Nessa altura já deve haver alguém pronto para afirmar que essas considerações não passam de filosofia do “coitadismo”. Afinal, é por culpa e incompetência dos próprios haitianos, e não de terceiros, que a situação está como está. Será mesmo? Será que o fato de ter sido o primeiro país a abolir a escravidão, por obra e força dos próprios escravos, não trouxe implicações sentidas até hoje? Será que a reparação concedida aos franceses pela perda da colônia não abalou de forma quase que irrecuperável a economia da incipiente nação? A história presente não conta com sensíveis determinantes pretéritos?

Pois é esse discurso condenatório de um suposto “coitadismo” que isenta de responsabilidade os governantes pelos desastres recentemente ocorridos em São Paulo em decorrência da chuva. Basta dizer que o pessoal que morreu soterrado habitava áreas de risco por que queria. Com certeza! Há moradia sobrando no Brasil. E essa gente está lá por desejo próprio, não por falta de condições econômicas para residir num lugar apropriado, ou pelo menos seguro. Só é difícil responder por que são pobres – e quase que invariavelmente pobres – os que residem nessas áreas de risco.

É essa mesma lógica interna que alimenta a internacional. Um país, e consequentemente seu povo, é próspero se quiser. Basta seguir o receituário dos que já são ricos, ainda que o preço a ser pago seja o de torná-los ainda mais abastados. Portanto, é preciso querer! Pense positivo que o dinheiro aparece. Em certo momento ele será tanto que vai faltar bolso e bolsa. Até vai ser necessário guardá-lo nas meias ou nas cuecas.

Em tempos de absurdas injustiças entre os homens fica difícil acreditar que um dia possamos viver num mundo melhor. Mas ainda há chamas que, iluminando um caminho de esperança, insistem em permanecer acesas. E quando você as chama por Zilda Arns ou pelo nome dos outros civis e militares brasileiros que pereceram no Haiti, elas incandescem.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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