Direito à Memória



Difícil entender a resistência de alguns setores às pretensões governamentais de elucidar o lamentável fato histórico iniciado em 1964. Pelo reconhecimento dos equívocos do passado é que podemos enfrentar melhor o futuro. Daí a fundamental importância da memória.

Obviamente que a possibilidade de esclarecimento sobre o que aconteceu pode inclusive esfumaçar supostos mitos surgidos desde o manto que esconde a realidade histórica. Essa suposição pode ser exemplificada com a atuação dos grupos armados. Dada a prodigalidade de siglas sob as quais pessoas se reuniam para combater o regime, é errado generalizar romanticamente para afirmar que todas buscavam apenas o re-estabelecimento da democracia. Será que não havia entre elas aqueles que pretendiam implantar um regime com práticas parecidas às daquele em vigência, somente com uma ideologia diferente? Não haveria entre essas pessoas também aqueles dispostos a cumprir seus objetivos a qualquer preço, inclusive desrespeitando conceitos hoje consolidados como os de direitos humanos e atingindo inocentes alheios à disputa?

Somente a história pode eliminar maniqueísmos que adjetivam agentes históricos como heróis ou vilões, e não como seres humanos, capazes, em constante dinamismo, de acertos e erros, e a partir destes permitir julgamentos históricos.

Ainda que o país vivesse período de extrema instabilidade política no governo Jango, é difícil justificar o golpe das forças auto-referenciadas “revolucionárias”. O legado do golpe com relação, por exemplo, à atuação política da sociedade brasileira é bastante nítido. O cenário era de um país que dispunha de segmentos politizados dispostos a transformar o país, isso sem necessariamente implementar o comunismo no país. Pois essa disposição foi simplesmente destroçada pela ditadura. Hoje, com raríssimas exceções, estamos perdidos entre um consumismo individualista e irrefreado, elegendo agentes públicos dispostos a carregar dinheiro em meias e cuecas.

Mas imaginar que essa triste herança, aliada ao desrespeito aos mais básicos direitos fundamentais, violentados pela tortura e assassinatos, é algo atribuível única e exclusiva aos militares da época é incorrer em outro grave equívoco. Havia forças civis, inclusive orientadas e amparadas por interesses internacionais, que legitimaram o golpe. Aliás, muitos dos que aplaudiram ostensivamente a ditadura atualmente posam como líderes estadistas defensores da democracia.

Por outro lado, o receio se torna fundado quando os resistentes imaginam a possibilidade de puro revanchismo. Se essa suspeita se confirmar, a questão já começa mal. Mas na medida em que arquivos sejam disponibilizados para a pesquisa sobre o que realmente aconteceu, o temor fenecerá. Análises isentas poderão apontar responsabilidades, de quem quer que seja.

Por tudo isso é necessário deixar a história em paz. É pela difusão do Holocausto que se faz inadmissível o reinício das desumanidades fascistas. É pela divulgação das arbitrariedades ocorridas no Chile e na Argentina que se faz inadmissível nesses países o reaparecimento de governos investidos de poderes ditatoriais. O Brasil também tem direito à sua história.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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