Seletividade punitiva



As composições artísticas, nos seus mais distintos segmentos, por vezes antecipam perplexidades do presente, possibilitando refletir sobre soluções para o futuro. São muitas, por exemplo, as obras cinematográficas que discutem a situação dos imigrantes na Europa. Mas uma delas em especial prognostica medidas estatais adotadas por países europeus com o objetivo de impedir fluxos migratórios, mesmo que pela repressão ou restrição da liberdade dos imigrantes.

O filme “Bem-Vindo” trata de um adolescente iraquiano, recém chegado à França, que pretende ingressar na Inglaterra para encontrar sua amada e jogar futebol no Manchester United. Sua condição é a mesma da de muitos outros imigrantes que abandonam seus países de origem em busca de oportunidades em nações ditas desenvolvidas. Economicamente desenvolvidas, é preciso ressaltar. No plano da humanidade, exceto com relação aos patrícios europeus, o tratamento é passível de severas críticas.

É curioso observar que essas nações, que ora se ocupam desse tipo de segregação, são as mesmas que até bem pouco tempo atrás espoliavam sem pudores as riquezas naturais dos países de onde provêm os imigrantes. Enriqueceram e agora nem pensam em “dividir o bolo” – para ficar numa expressão conhecida dos brasileiros – com aqueles que contribuíram para seu enriquecimento (é claro que as cabeças pensantes dos países não desenvolvidos são aliciadas por melhores condições de pesquisas, pois o círculo espoliativo, ainda que em outros campos, permanece).

E não custa lembrar que, enquanto necessária a mão de obra barata dos imigrantes, para o sustento material do desenvolvimento econômico, o ingresso destes era amplamente fomentado. Quando os imigrantes se tornaram dispensáveis, o aparelho estatal foi convocado a resolver a questão, através da restrição dos direitos dos que já haviam ingressado e impedindo o movimento daqueles que pretendem ingressar. No mais das vezes pela utilização de medidas penais.

Não devemos pensar que essa realidade européia é alheia a nós brasileiros. No Brasil observa-se fenômeno parecido, mas com outros atores. Ao longo da história, as elites amplamente se beneficiaram da força de trabalho não especializada. Quando estas se tornaram obsoletas, terminaram segregadas, jogadas em minúsculas propriedades rurais ou favelas urbanas, tal qual sujeira jogada para debaixo do tapete. E quando este pessoal começou a se articular, o estado, sempre parcial na defesa das elites, se viu na necessidade de adotar medidas que mantivessem as coisas em seus devidos lugares. Inclusive, se necessário for, convocando o Direito Penal. Basta lembrar o fenômeno da criminalização dos movimentos sociais. Não se trata aqui, como seria exigível, da punição de eventuais excessos, mas de restringir mesmo a existência dos movimentos.

Ainda embevecidos pelas festividades carnavalescas, pelo menos ainda podemos fazer piada de mau gosto. Pois nesse caldo desagradável, os europeus ainda levam vantagem. Se hoje maltratam os imigrantes, pelo menos tratam com respeito seus nacionais. No Brasil, dependendo da condição social do sujeito, nem isso.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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