Decisões importantes (IV)



exta-feira da semana passada. Noite. No interior do cinema, talvez não estivessem presentes vinte pessoas. Tão poucas que a sala de projeção era imensa, quase vazia. Em cartaz nenhum blockbuster, mas um filme nacional, precisamente gaúcho, a tratar de uma ferida ainda não cicatrizada.

“Em teu nome” é um belo filme. Não apenas mereceria ser assistido por suas qualidades, como o deveria ser para que compreendêssemos um pouco melhor nossa história. E arrisco afirmar que exatamente pela sua proposta, de provocação e reflexão, tenha interessado a alguns poucos. Fosse o filme vazio de conteúdo, repleto de efeitos especiais e cenas de sexo – sugeridas ou explícitas – com deslumbrantes modelos, talvez a sala estivesse lotada.

Pois bem, mas este não é um espaço de opinião sobre artes, mesmo por que o autor deste texto não dispõe da mínima qualificação para escrever sobre o assunto. O que repercute é esse nosso crônico desinteresse em tratar dos assuntos políticos. E entenda-se por ‘nosso’ a média do povo brasileiro. Há exceções, obviamente. Ora, como um povo que não se importa com sua história – e de alguma forma o cinema, enquanto manifestação artística, é um instrumento de reflexão nas mais distintas esferas do pensamento, inclusive a histórica – pode se posicionar a respeito de questões como a anistia? Há pouco o Supremo Tribunal Federal – STF decidiu sobre ela. Em curto período antes e outro curto período depois da decisão houve algum debate e divulgação aqui e acolá. Mas nada que despertasse a atenção como aquela observada sobre o desenrolar de uma novela ou de quem comporá o paredão do BBB.

E o que decidiu o STF? Decidiu que o crime de tortura está abrangido pela Lei de Anistia. É importante ressaltar, não é a Lei de Anistia que estava sendo questionada, apenas se indagava sobre seu alcance com relação a um dos crimes mais repulsivos que o ser humano pode conceber. Não havia a pretensão de dirigir uma possível ressalva da Lei de Anistia em prejuízo a quem fosse apenas do governo da época, mas a quem quer que houvesse torturado quando do estado de exceção instaurado em 1964. Portanto, se alguém das alegadas forças subversivas também tivesse praticado a tortura, inevitavelmente seria processado. O que não se desmente é que o estado de então foi useiro e vezeiro da tortura. Mas só esse argumento, fundamentado na suposta vingança urdida por homens de esquerda, não é suficiente para deixar impune os sádicos da época.

O Supremo resolveu tratar a ferida abaixo de sal grosso. Que cicatrize à força! Enterre-se bem fundo esse intervalo histórico em esquife inviolável com muito concreto por cima. Ainda que correndo o risco de incentivar golpistas de plantão em suas aventuras de implantar a ‘lei e a ordem’ abaixo de tortura. Depois se cria uma lei da impunidade. Que deixa impune, como deveria, não apenas os crimes decorrentes do embate ideológico, mas também a tortura. A mesma tortura aplicada não apenas a guerrilheiros e que tais, mas a pessoas que simplesmente ousaram se opor pacificamente ao regime.

Legitimou-se uma Lei que foi resultado não de um amplo acordo com os diversos setores sociais envolvidos, como muitos apregoam, mas gestada nos intestinos do próprio regime (a propósito, há um livro de entrevistas do ex-presidente Geisel onde narra seus esforços para compor com a linha dura do governo sobre a anistia).

Mas enfim, o Supremo não decidiu apartado dos interesses do respeitável público. Decidiu na exata medida do desinteresse da sociedade brasileira. A decisão não poderia ser outra. Pelo menos enquanto nossos cinemas permanecerem vazios quando tratam de assunto tão importante...

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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