Mais Shakespeare, menos José de Alencar



Chega um momento da vida em que sentimos uma enorme nostalgia dos livros que não lemos. Isso porque, independentemente da bagagem cultural que cada um carrega, há sempre um déficit entre o conhecimento desejado e o efetivamente obtido. Apesar de mecanismos de busca como o google – este provedor de sabedoria instantânea – e de todos os avanços tecnológicos, dados e informações esparsas apenas se transmudam em conhecimento efetivo depois de sua assimilação sistemática e de alguma maturação. Conhecimento sólido é que nem o vinho de guarda: um repouso mínimo é essencial.

Assim, na hora de falar de improviso, no instante de rebater um argumento, na ocasião de redigir um texto com certa urgência, a internet não nos será de grande valia. O que poderá acorrer em nosso auxílio é o conhecimento adquirido pelo mesmo caminho já trilhado pelos grandes gênios, de Sófocles a Dostoiéviski: leitura atenta, retenção dos tópicos principais pelos processos da memória e integração gradativa do conhecimento novo ao acervo intelectual já existente.

Penso nisso ao examinar os conteúdos que vêm sendo exigidos dos candidatos a magistratura sob o título “ Formação Humanística”. Conhecimentos de Sociologia e de Filosofia do Direito, de Psicologia Judiciária, de Ética e de Teoria Geral do Estado. Oportuna e cabível a exigência, considerando a dificuldade imensa de julgar a conduta do semelhante, mas...e o seu impacto sobre os candidatos que não tiveram como buscar por conta própria conteúdos que não foram ministrados no Ensino Médio, ou na própria Faculdade de Direito? Terão tempo, às vésperas dos exames, para inteirar-se de noções de Filosofia, Sociologia, Ciência Política e Psicologia, pressuposto incontornável para entender-se as projeções específicas destes ramos do conhecimento sobre a ciência jurídica?

Daí o título deste artigo, sem qualquer desconsideração à figura do nosso romancista romântico José de Alencar. O que questiono é se não estamos estudando demais “Iracema”, e de menos “Crime e Castigo”, privilegiando “A viuvinha” em detrimento de Hamlet. “Mais Shakespeare, menos José de Alencar”, mas o título deste artigo poderia ser também “Mais Homero, menos Raul Pompeia”: Li “ O Ateneu” quando tinha doze anos, a mando de uma professora, mas não passei os olhos pela Ilíada ou pela Odisseia nem em sua versão em quadrinhos. Toda a tragédia grega que nos foi legada através dos séculos, e para passar no vestibular de literatura precisávamos apenas diferenciar o simbolista do parnasiano.

O que questiono, em última análise, é a ausência dos grandes textos formadores na época da nossa formação, quando são construídos os alicerces do edifício intelectual que carregamos por toda a vida. Quanto tempo de elaboração é suprimido de um candidato ao cargo de juiz pela apresentação tardia dos grandes cânones do pensamento ocidental, quantas ilações, percepções e conexões são sonegadas ao acadêmico de Direito que passa ao largo das obras seminais da literatura de todos os tempos! Direito, vale sempre lembrar, não é apenas uma coisa que se sabe, mas também uma coisa que se sente. Daí a expressão sentença, do verbo latino sentire, daí a palavra acórdão, a simbolizar o conhecimento que passa pelo coração. Ora, alguém que é apresentado a estes cânones do pensamento nos verdes anos tem a possibilidade de com eles conviver por muito mais tempo, estando certamente mais apto a absorver a Psicologia, a Sociologia e a Filosofia exigíveis para o melhor desempenho do cargo não só de juiz, promotor ou advogado, mas de qualquer profissão em que seja imprescindível a avaliação do agir do semelhante. Em outras palavras, uma convivência precoce com os grandes textos formadores enseja um melhor desempenho de qualquer atividade humana, em qualquer época ou lugar.

E o resto? Bom, o resto é silêncio.



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