As pedras da brutalidade



Há quem afirme que a impossibilidade de definição dos direitos humanos implica a inviabilidade de sua aplicação prática. Como estabelecer limites com base naquilo que é, por natureza, inapreensível? Outros preconizam que é possível estabelecer determinados consensos a respeito. Sua observância prática decorreria de formulações criadas a partir de trâmites formais de composição, como as legislações. Os direitos humanos, no entanto, não seriam revelados desde um conteúdo que lhes seja intrínseco, mas criados nos ambientes dispostos a obedecê-los. Por isso mesmo, envolvem um conceito que, ainda que possa ser estabelecido, é relativo, passível de variação conforme o meio e o tempo histórico.

Mas ainda que relativo o conceito de direitos humanos, nada impede que sejam formulados juízos acerca de procedimentos ou ações. Certamente é preciso não confundir direitos humanos com perigosas pretensões ‘civilizadoras’ que, dissimuladamente, não passam de planejamentos colonialistas. A história é pródiga de exemplos. Se há culturas que adotam práticas que nos parecem censuráveis, devemos respeitá-las e não subjugá-las aos nossos padrões sob o frágil argumento de que só assim estarão elas obedecendo aos direitos humanos.

É possível, portanto, que o fator essencial dos direitos humanos resida no seu objetivo precípuo: alcançar a mais completa emancipação individual. Assim, nas situações em que essa almejada emancipação corra algum risco de perigo ou restrição, os direitos humanos devem atuar como a ferramenta necessária para afastar esse risco. Se em determinada comunidade o uso obrigatório do véu é uma prática amplamente aceita pelas mulheres que têm o dever de usá-lo, impor sua desobrigação, por que no ‘Ocidente’ essa prática é incabível, não se estaria em nada contribuindo para a emancipação individual das mulheres que concordam com seu uso.

Vejamos o exemplo do adultério. Essa é uma questão que, em princípio, interessa apenas àqueles diretamente envolvidos, mas pode afetar interesses outros, dependendo dos valores culturais, éticos ou religiosos de determinada comunidade. Isso não significa que essas comunidades estejam autorizadas a adotar quaisquer medidas contra o adultério por que sua prática viola algum de seus preceitos. Podemos até consentir que a prática do adultério não contribui em nada para a emancipação individual. Entretanto, o adultério não pode ser utilizado como fundamento à restrição dessa mesma emancipação.

Por esses motivos, inexiste qualquer fundamento para a condenação da iraniana Sakineh Mohammadie Ashtiani: morte por apedrejamento, pela prática do adultério. Sua execução viola frontalmente os direitos humanos enquanto prática de emancipação do ser humano, a justificar inclusive a atuação internacional para impedi-la, sem receio de qualquer invasão de soberania. Não se trata de desconsiderar o relativismo moral como instância de defesa do multiculturalismo, porém, de defender o que há de mais precioso para o ser humano, independentemente do seu meio ou tempo histórico: a vida.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Vice-Presidente Cultural e da ESMAFE



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