A igualdade que desiguala



É muito comum ouvirmos que todos são iguais perante a lei, como se coubesse socar todo mundo dentro de uma bacia para não admitir diferenças de qualquer ordem. Leigos ou mesmo bacharéis em direito invocam constantemente a regra constitucional como uma fórmula mágica, ignorantes de que seu emprego injustificado pode sufocar diferenças que devem ser protegidas e estimuladas.

Costuma-se atribuir a Aristóteles a famosa recomendação de tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, na medida da desigualdade. A discussão acerca da isonomia, portanto, não é nada nova. Mas o tempo de Aristóteles era outro. A escravidão era não apenas admitida, como incentivada. As mulheres submetiam-se às determinações do varão, fosse pai, irmão ou esposo. A frase, então, merece temperamentos. Não é por que homens e mulheres são diferentes em alguns aspectos que se justifica admitir tratamentos diferenciados, senão aqueles limitados às poucas diferenças havidas entre eles. Como a diferença não tem nada a ver com capacidade física ou política, não há motivo plausível para impedir que mulheres votem e sejam votadas ou ingressem em carreiras militares ou policiais. Mas como historicamente se admitia a prevalência da vontade masculina, inclusive mediante o absurdo uso da violência, é necessária a Lei Maria da Penha para coibir ações dessa espécie. Logo, afirmar que a Lei Maria da Penha viola a cláusula geral da igualdade revela, no mínimo, incompreensão acerca do alcance do preceito da isonomia.

Em recente entrevista a um diário carioca, o sociólogo Boaventura de Souza Santos retoma formulação de sua autoria para afirmar: “temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza, temos o direito de ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”. Perfeito! Todos somos iguais perante a lei, mas não podemos desconsiderar, por exemplo, as naturais diferenças entre os adultos e as crianças e adolescentes ou daqueles com relação aos idosos. Exatamente por isso que dispomos de um Estatuto do Idoso e outro da Criança e do Adolescente. Os tratamentos legais são distintos para que não se descaracterize a infância e a ancianidade.

Agora, mudemos o enfoque. Os juízes pela especial função que exercem não devem ser tratados, em alguns aspectos, de forma diferenciada? Vejam, o foco é sobre a função, não sobre a pessoa. Na platéia de um teatro o juiz não tem prerrogativa sobre ninguém, pois não está em pauta sua função. Qualquer privilégio aqui é insensato. Mas atentemos para a atividade judicial. Salvo raras exceções, a decisão do juiz ordinariamente desagrada alguém. Não se deve então proteger o juiz das possíveis investidas do inconformado?

Alguns pontos, a propósito dessa necessária diferenciação, serão objeto de reflexão em colunas futuras. O importante agora é fixar a idéia de que há tratamentos diferenciados não pela pessoa do juiz, mas pela relevância da função exercida. E o preço a ser pago pela pretensão de colocar o juiz, no exercício da atividade jurisdicional, naquela bacia inicialmente mencionada, pode ser mais alto do que imaginamos.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Vice-Presidente Cultural e da ESMAFE



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