Caso Pimenta Neves: 10 anos



O caso Pimenta Neves, que acaba de completar 10 anos, mostra de forma emblemática o quanto o sistema penal brasileiro pode ser ineficiente.

No dia 20 de agosto de 2000 a jornalista Sandra Gomide foi morta com dois tiros no haras de sua família, na cidade de Ibiúna/SP. O autor dos disparos foi imediatamente identificado pela polícia, vindo a confessar o crime: tratava-se do então companheiro da vítima, o também jornalista Pimenta Neves. Passados longos 10 anos desde que o crime foi cometido o jornalista continua em liberdade, sem ter cumprido um dia sequer de pena. Por quê? Certamente não é por ainda não ter sido julgado. Pimenta Neves já o foi duas vezes, tendo sido condenado pelo Tribunal do Júri a 19 anos, 2 meses e 12 dias de prisão, condenação essa confirmada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em grau de recurso.

A explicação para isso está em uma interessante combinação, que bem poderia ser chamada de fórmula da impunidade. Trata-se da conjugação de uma lei com excesso de recursos e uma interpretação do princípio da presunção da inocência que passa a exigir que somente após o esgotamento de todos esses recursos a sentença possa ter algum efeito.

A legislação brasileira prevê uma ampla gama de recursos que possibilitam prolongar indefinidamente o trâmite de uma ação criminal. No caso de Pimenta Neves, por exemplo, foram interpostos pelo menos 26 recursos, o que dá bem a dimensão do quanto o sistema atual é anacrônico e precisa ser reformado.

Destaco que o excesso de recursos não é problema exclusivo nas ações criminais, sendo causa de morosidade do Judiciário também em ações cíveis. No caso do processo civil está sendo proposta uma reforma na qual haverá significativa simplificação dos recursos. No processo criminal, porém, as perspectivas não são nada boas. Está em andamento no Congresso Nacional proposta de reforma recentemente apresentada pelo Senador José Sarney na qual praticamente nada é alterado na atual sistemática. Os autores do projeto justificam que isso afetaria a ampla defesa.

O outro fator decisivo para que Pimenta Neves continue em liberdade é a interpretação que vem sendo dada ao princípio da presunção da inocência no direito brasileiro, segundo a qual uma condenação criminal somente pode ter efeito quando todos os recursos possíveis tiverem sido esgotados, havendo o que tecnicamente é chamado de trânsito em julgado.

É preciso salientar que tal interpretação não encontra paralelo em outros países. Nos Estados Unidos, por exemplo, a legislação federal prevê como regra que o condenado comece a cumprir pena tão-logo condenado, já em 1ª instância (US Code, Title 18, § 3143). Já na Alemanha a regra é que o início do cumprimento da pena se dê após o julgamento da apelação, a qual tem efeito suspensivo (StPO, § 343). Porém no caso de crimes graves, tais como homicídio, a regra é que o réu responda ao processo preso (StPO, § 112), e não em liberdade tal como ocorre no Brasil. Por fim na Itália – de onde copiamos o dispositivo de nossa Constituição que trata da presunção de inocência (art. 27, alínea 2, da Constituição italiana de 1947) – o trânsito em julgado se dá com o julgamento da apelação, tornando-se a partir daí definitiva eventual condenação (CPP, art. 648, I)..

Em nenhum desses países há um sistema parecido com o nosso, onde, de acordo com a interpretação dada no caso Pimenta Neves e que parece vir se consolidando na jurisprudência do STF (HC 84078), somente após o julgados todos os recursos alguém pode ser submetido ao cumprimento de pena. Também é difícil imaginar em algum deles que um assassino confesso pudesse ser considerado como presumivelmente inocente: não haveria malabarismo jurídico que justificasse uma interpretação tão contrária à lógica.

Se por um lado é certo que dentro de um Estado de Direito o processo e julgamento de crimes deve se dar dentro de marcos previamente estabelecidos pela Constituição e pela lei, respeitando-se garantias dos acusados, por outro também é certo que isso não pode ser subvertido a ponto de se assegurar impunidade. É preciso encontrar um ponto de equilíbrio, no qual tanto as garantias do réu quanto o interesse da sociedade e o das vítimas possam ser objeto de proteção. Infelizmente ainda estamos muito longe disso.

Gueverson Farias

Juiz Federal



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