Reconstruindo a Revolução



Na semana que passou iniciou-se a lenta desconstrução do acampamento farroupilha aqui em frente à Justiça Federal. Depois de mais de trinta dias de festejos, a Estância da Harmonia retoma seus dias de silêncio.

Analisando a extensão do acampamento, o afluxo contínuo de público e o espaço que a data farroupilha ocupa na imprensa, vê-se que o Vinte de Setembro faz bem para a alma gaúcha. Tornou-se, finalmente, popular. Na sua gênese foi, entretanto, um movimento gestado pela elite agrária do sul profundo, e teve um componente tributário de basilar importância. Uruguai e Argentina taxavam o sal com pesados impostos de exportação, o que tornava o charque da província do Rio Grande mais caro. Por outro lado, o charque platino chegava ao centro do país com preços bem camaradas, tornando-o mais competitivo do que aquele produzido aqui.

Começou uma revolta que, pouco a pouco, foi absorvendo um ideário tido por progressista. Proclamou-se a república (ainda que o Chefe supremo da revolução, Bento Gonçalves, só tenha sido avisado posteriormente), ofertou-se igualdade, prometeu-se liberdade aos escravos negros. Todavia, as cidades mais importantes da província - Pelotas, Rio Grande e Porto Alegre - permaneceram leais ao império brasileiro.

No caso específico de Porto Alegre, o domínio Farroupilha foi breve. Do entrevero na Ponte da Azenha, na véspera do Vinte de Setembro, até a fuga de Manuel Marques de Souza do barco-prisão Presiganga, em 15 de junho de 1836, não transcorreram nove meses. O plano revolucionário de dominar a capital, mal formulado, terminou em vexame: os legalistas se apossaram do quartel farroupilha, deram o toque de reunir em plena madrugada, e à medida que os revolucionários, desavisados, acorriam para atender o chamado da corneta iam sendo presos, um a um. Revelou-se, assim, que a "leal e valorosa" cidade de Porto Alegre não possuía um DNA rebelde.

Inconformados, os farroupilhas organizaram três sítios consecutivos, visando a retomada da cidade pela fome, pelas armas, ou pelas epidemias que grassavam entre a população. Confinados entre dejetos e alagadiços, protegidos pelas trincheiras que rasgavam a pequena península rochosa e por aquele imenso rio amarronzado que, naquela época pré-aterros, parecia ainda mais largo, os porto-alegrenses não se entregavam. A cada carga de cavalaria os moradores reforçavam baluartes e barricadas e resistiam. Salvas de artilharia eram respondidas com projéteis da mesma potência e calibre, trazidas em barcaças provenientes de Rio Grande. E de tempos em tempos piquetes saiam de trás das linhas fortificadas para incursões em território inimigo, capturando o gado e os cavalos tão necessários à defesa da cidade.

O General Netto, incomodado com a resistência, ordenou que uma bateria de canhões fosse posicionada no ponto mais alto da Estrada dos Moinhos - atual confluência da Avenida Independência com a Rua Ramiro Barcelos . Na noite de 20 de junho de 1837, petardos sibilavam na noite escura, espalhando pânico e sangue. De acordo com o historiador Sérgio da Costa Franco, em seu livro "Porto Alegre sitiada" (Editora Sulina) o bombardeio daquela noite causou nove mortes e um número não contabilizado de feridos. Houve outros enfrentamentos, testando a temperança da população. Computadas as suas três fases, o cerco chegou a 1283 dias .

Terminada a guerra, em 1845, a república rio-grandense foi desfeita. Parte dos escravos negros que combatiam pela causa foi massacrada em Porongos, num episódio até hoje mal explicado. Sobrou a bandeira, o hino e uma festa popular em que o mito sobrepõe-se aos fatos. De qualquer maneira, os farrapos repelidos à época hoje vivem imorredouros nas tabuletas azuis que nomeiam praças e ruas, no imaginário do porto-alegrense e nesta grande colméia que viceja entre meados de agosto e o segundo decêndio de setembro na estância da Harmonia. Terminados os festejos de 2010, seria profícuo que o comitê organizador da festa de 2011 começasse a discutir a inclusão de uma homenagem específica aos que combateram do lado de cá das trincheiras - integrando-os de forma definitiva à data que celebra os valores e tradições de um povo a que nunca faltou coragem.

Marcel Citro de Azevedo
Diretor Cultural da AJUFERGS



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